Protestos no Tibete

 

 

AFP

 

Em março de 2008, o mundo voltou a olhar com apreensão para o Tibete, região central da Ásia controlada pela China. Uma manifestação pacífica de monges contra o domínio chinês rapidamente ganhou toques de violência e dramaticidade, com lojas e carros incendiados, repressão militar, prisões e um saldo de ao menos 13 mortos. Meses antes do início das Olimpíadas, a China acusa os manifestantes de criar embaraços a Pequim, tentando jogar a opinião pública mundial contra o governo comunista. Do outro lado, está o líder espiritual do Tibete, o Dalai Lama, que vive no exílio e pede autonomia para a região, controlada pela China desde 1951. Entenda a questão. 

1. Qual o interesse da China no Tibete?

A ocupação chinesa se dá por interesses estratégicos, apetite territorial e destino imperial. A China alega soberania histórica sobre o Tibete e sua estratégia é levar ao país seu modelo de desenvolvimento. Por isso, os chineses, entre outras medidas, constróem prédios e substituem a arquitetura tradicional local por outra, similar à de suas metrópoles. As transformações fazem sentido na ótica de Pequim: no Tibete, milhares de imigrantes chineses lideram importantes setores da economia. A "invasão" chinesa pode ser percebida também na atual conformação da população: em Lhasa, capital da região, menos de 25% dos 300.000 habitantes são tibetanos. Os chineses ocupam praticamente todos os cargos públicos e os empregos mais importantes, como professores, bancários e policiais. Por fim, o subsolo do Tibete é rico em metais – cobre, zinco e urânio –, com reservas suficientes para suprir até 20% da necessidade da China. 

2. Como se deu o domínio chinês sobre a região?

A China ocupa o Tibete desde 1951. Os primeiros conflitos entre os dois países, no entanto, começaram muito antes. No século XIII, o Tibete foi conquistado pelo império mongol. Em 1720, foram os chineses, durante a dinastia Ching, que invadiram o país. Em 1912, com a queda da dinastia, os tibetanos expulsaram da região as tropas chinesas e declararam autonomia. Em 1913, numa conferência realizada em Shimla, na Índia, britânicos, tibetanos e chineses decidiram dividir o Tibete: uma parte seria anexada à China e outra se manteria autônoma. Ao retornar da Índia, o 13º Dalai Lama declarou oficialmente a independência do Tibete. Porém, o acordo de Shimla nunca foi ratificado pelos chineses, que continuaram a reivindicar direito de posse sobre o território. Em 1918, houve um conflito armado entre chineses e tibetanos: Rússia e Inglaterra tentaram, sem sucesso, intervir. Em setembro de 1951, o Tibete foi, então, integralmente ocupado pelas forças comunistas de Mao Tsé-tung, sob o pretexto de "libertar o país do imperialismo inglês". 

3. Quantos tibetanos já morreram devido à opressão externa?

A ocupação chinesa no Tibete foi marcada pela destruição sistemática de mosteiros, pela opressão religiosa, pelo fim da liberdade política e pelo aprisionamento e assassinato de civis em massa. Estima-se que 1 milhão de tibetanos já tenham morrido nas mãos do Exército chinês. Durante o governo de Mao Tsé-tung, os chineses tentaram sufocar ainda a religiosidade local, destruindo santuários e assassinando monges aos milhares. Até hoje, a região está sob pesada vigilância. Os meios de comunicação são controlados por Pequim, bem como a movimentação de pessoas. A liberdade de culto é, no entanto, um pouco maior. Mesmo assim, a polícia chinesa está sempre presente em mosteiros e em templos budistas. O resultado da mão-de-ferro chinesa são os mais de 100.000 tibetanos refugiados pelo mundo. Os atuais protestos têm sido contidos com força – os monges são espancados e aprisionados. 

4. Qual a importância do Dalai Lama para os tibetanos?

O Dalai Lama é o líder político e espiritual do Tibete. Segundo a crença popular, ele é a reencarnação de Buda. O atual lama é o 14º de uma seita que está no poder desde o século XVII. Ele foi o ganhador do Nobel da Paz em 1989 por sua luta pela autonomia tibetana. Se a China não consegue transformar o Tibete numa província como outra qualquer é porque a campanha do regime comunista esbarra no extraordinário fervor religioso da população. Em torno do líder exilado, que se instalou numa cidade indiana, reúne-se a única resistência organizada. Por definição, o Dalai Lama está acima dos desacordos mundanos. Os lamas são detectados entre crianças comuns pelos monges budistas por meio de sonhos e presságios. 

5. Como ele exerce a função de chefe de estado?

O líder dos tibetanos assumiu a posição de chefe de estado em 1950, quando tinha apenas 16 anos. Desde então, sua maior missão tem sido negociar a soberania do Tibete com o governo chinês. Ele vive exilado há 49 anos e é da Índia, onde mora, que luta pela preservação da cultura tibetana. Ele já fundou 53 assentamentos agrícolas de larga escala para acolher os refugiados, idealizou um sistema educacional autônomo – existem hoje mais de 80 escolas tibetanas na Índia e no Nepal – para oferecer às crianças pleno conhecimento de sua língua, história, religião e cultura, além de já ter elaborado uma Constituição democrática para um Tibete livre. Embora o governo tibetano no exílio e o governo da China não mantenham relações diplomáticas, o Dalai Lama tentou por 20 anos encontrar uma solução pacífica para a independência. 

6. Qual a reivindicação do líder tibetano junto ao governo chinês?

O Dalai Lama já desistiu, há muito tempo, de reivindicar a independência tibetana. Atualmente, ele afirma que defende uma autonomia "significativa" para a região, o que incluiria a liberdade de culto e a restauração do ensino em língua tibetana. Pequim repudia a idéia, temendo que a mínima concessão possa incentivar o separatismo entre outras minorias étnicas. 

7. O que detonou a atual crise na região?

Os tibetanos foram à ruas em março de 2008 para lembrar os 49 anos de uma grande revolta contra a China, ocorrida em 10 de março de 1959. O Levante Nacional Tibetano deixou um saldo de 87.000 mortos e a fuga para o exterior do Dalai Lama, seguido por 100.000 tibetanos. O protesto, ocorrido na capital tibetana de Lhasa, é considerado o auge da resistência tibetana. Temendo por sua própria segurança, o Dalai Lama deixou Lhasa em 17 de março de 1959. 

8. Qual a posição da ONU diante dos conflitos no Tibete?

Pouco após a invasão chinesa, o governo tibetano manifestou-se contra a agressão na Organização das Nações Unidas, mas a Assembléia Geral adiou a discussão do problema. Na verdade, a ONU nunca expressou protesto algum contra a ocupação. As manifestações mais importantes ocorreram em 1959, quando o órgão mundial pediu "respeito aos direitos humanos fundamentais do povo tibetano e à sua vida cultural e religiosa". Em 1961 e 1965, a ONU voltou a lamentar "a supressão da vida cultural e religiosa características" do povo tibetano. Em 1991, a entidade expressou-se "preocupada diante de continuadas denúncias de violações dos direitos e liberdades humanas fundamentais que ameaçavam a identidade cultural, religiosa e nacional distintas do povo tibetano". Porém, nada mudou. 

9. Qual a posição da comunidade internacional?

O Dalai Lama possui um ótimo trânsito internacional. Em 1967, ele iniciou uma série de viagens para divulgar a causa, que já o levou a 42 países. O giro lhe rendeu, por exemplo, a Medalha de Ouro pelo Congresso americano, além da adesão de estrelas de Hollywood à Campanha Internacional pelo Tibete. Após os protestos de março de 2008, reprimidos com violência pelo governo chinês, a União Européia pediu a Pequim a suspensão da repressão violenta, além da liberação dos manifestantes detidos. Na mesma linha, o embaixador americano em Pequim, Clark Randt, pediu ao governo chinês que dê provas de moderação no Tibete e não recorra à força. A Casa Branca qualificou como deploráveis os episódios de violência. 

10. Há alguma possibilidade de a China conceder independência ao Tibete?

O governo chinês sequer considera tal possibilidade. A China utiliza-se de sua força – econômica, militar e diplomática – e defende obstinadamente a tese de que o Tibete é tão chinês quanto Hong Kong, cedido à força à Inglaterra colonialista, transformado em paraíso capitalista e devolvido em 1997. Para 1,3 bilhão de chineses, o Tibete sempre fez parte da Pátria Mãe.

 


Dalai Lama

 

Reuters

 

A série de protestos que tomou conta do Tibete, no início de março de 2008, pode levar o país a viver uma situação inédita: a renúncia do Dalai Lama. Tenzin Gyatzo, o atual lama, ameaçou abandonar o posto de líder espiritual depois de ser acusado pelo governo da China de incentivar as manifestações – que se opõem justamente à presença chinesa no Tibete. A sucessão dos lamas, no entanto, envolve muito mais do que o cenário político: afinal, eles são vistos pela população local como a reencarnação de Buda. Entenda melhor essa questão e o poder desta figura. 

1. Qual o papel do Dalai Lama para o budismo tibetano?

O Dalai Lama representa para os seguidores do budismo tibetano papel similar ao papa para os católicos, ou ainda mais do que isso: pois, para os fiéis daquela religião, os lamas são vistos como uma reencarnação de Buda. Assim como o papa, ele é designado Sua Santidade. Uma característica marcante da versão tibetana do budismo é a participação intensa da população nos assuntos religiosos. No Tibete, o líder espiritual é venerado de tal forma que chega a dificultar o domínio chinês sobre sua cultura. 

2. Como os lamas são escolhidos?

Eles são detectados entre as crianças pelos monges budistas, por meio de sonhos e presságios. A descoberta e verificação do escolhido, no entanto, envolve ainda outros processos. Assim que um Dalai Lama se aproxima da morte e dá indicações sobre seu renascimento, começam as buscas pela criança – que pode se identificar por iniciativa própria ou então ser reconhecida por possuir poderes especiais. A pesquisa é conduzida em segredo, para investigar predições de oráculos, sinais estranhos e fenômenos. Os jovens candidatos são, então, submetidos a uma série de testes. Eles devem, por exemplo, selecionar, de uma gama de objetos, os que já pertenceram a eles na vida anterior – ou seja, em sua vida como o falecido Dalai Lama. 

3. Quando um novo lama ascende ao poder?

Os lamas só assumem o poder com a morte de seu antecessor. Como o Dalai Lama é ungido aos 3 anos de idade, um regente é designado para governar até que o escolhido atinja a maioridade. Enquanto isso não acontece, a criança é levada para iniciar seus estudos e treinamentos preparatórios para se tornar o líder espiritual e religioso do Tibete. 

4. Desde quando os lamas governam o Tibete?

O atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso, é o 14º de uma seita que está no poder desde o século XVII. 

5. Por que, no Tibete, o líder espiritual também é o chefe de estado?

O budismo tibetano, em sua formação, preferiu manter-se isolado de influências externas. Dessa forma, o Tibete transformou-se em um estado religioso governado por seu sacerdote supremo e que, durante muito tempo, não manteve relações diplomáticas com nenhum outro país. Isso fez do budismo local uma variante única no mundo. No Tibete, vive-se de acordo com a tradição vajrayana, ou "veículo do raio", caracterizada por conferir mais importância aos aspectos místicos e ritualísticos do budismo, enfatizando, por exemplo, a crença na reencarnação e no ciclo de nascimentos e renascimentos dos indivíduos. A função da crença seria purificar a alma. Por características pessoais e políticas, o atual Dalai Lama preferiu não se manter isolado num monastério como seus antecessores, mas viajar pelo mundo para expor ao grande público os ensinamentos de sua religião e a luta dos tibetanos contra a opressão chinesa. 

6. É mesmo possível que o Dalai Lama abandone o poder?

Sim, mas o Dalai Lama pode renunciar apenas ao poder político, que exerce como chefe de estado, e não como líder religioso. Como explicou um de seus assessores, Tenzin Taklha, após a ameaça de renúncia: "Ele será sempre o Dalai Lama". Mas os planos do atual líder budista para deixar o poder político não vêm de hoje. Em 1992, ele publicou, no exílio, as diretrizes para a Constituição de um futuro Tibete livre. Nelas, determinou que sua primeira medida seria estabelecer um governo interino com a principal responsabilidade de eleger uma Assembléia Constituinte – que, por sua vez, deveria criar e implantar uma Constituição democrática. Então, o Dalai Lama prometeu transferir toda a sua autoridade política e histórica para o presidente interino, passando a viver como um cidadão comum. 

7. Qual a importância do atual Dalai Lama para a causa tibetana?

Desde que assumiu o poder, em 1950, o atual Dalai Lama afastou-se da tradição vajrayana de isolamento e elegeu como missão espalhar pelo mundo os conceitos básicos do budismo. Dessa forma, uniu seu ótimo trânsito internacional ao fascínio que o misticismo tibetano desperta no Ocidente. Além disso, transformou a causa da libertação do Tibete em um tema mundialmente conhecido. Em dezenas de viagens pelo mundo, foi recebido por vários chefes de estado e, até mesmo, por celebridades. Sua forma de pregar a libertação do Tibete sem o uso da violência lhe rendeu um Nobel da Paz, em 1989. O Comitê Norueguês do prêmio escreveu: "O Dalai Lama, em sua luta para a liberação do Tibete, constantemente se opõe ao uso da violência. Ele, em vez disto, advoga soluções pacíficas baseadas na tolerância e respeito mútuos para a preservação da herança cultural e histórica de seu povo".

 

Fonte: Veja Online, Perguntas&Respostas, mar/2008.

 


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