CRÔNICA
Quem é normal?

 

As pessoas tomam remédios para agüentar o rojão da vida e se acreditarem normais

 

De repente, surge uma fissura grave na couraça dos psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. As sessões com os pacientes não chegariam a lugar nenhum, dizem alguns. Os problemas e distúrbios de comportamentos hoje são resolvidos com drogas, afirmam outros. Entretanto, na edição de Veja, de 14 de março, o psiquiatra americano Peter Kramer, [veja artigo abaixo], diz que: “todos os remédios da classe dos inibidores de recaptação de serotonina, da qual o Prozac faz parte, são, em minha opinião, antidepressivos medíocres.” Daí, por exemplo, tanta controvérsia sobre o Prozac e seus sucessores que deixaram milhares de divãs sem pacientes. Agora, os tricíclicos voltam para valer. Com quem a verdade ou a certeza?

Será por tal fato que na classe médica há gracejo antigo? Ele diz, mais ou menos, o seguinte: O clínico geral sabe tudo e não faz nada, o cirurgião não sabe nada e faz tudo e o psiquiatra nem sabe nada e nem faz nada. Mera piada, é claro. 

Talvez por não terem obtido sucesso em suas visitas a psiquiatras, psicanalistas e psicólogos é que tantas pessoas apelam para o consumo continuado de calmantes, antidepressivos e estimulantes de todas as naturezas, dosagens e composições químicas. Todas têm um médico amigo que as prescreve. As pessoas tomam remédios para agüentar o rojão da vida e se acreditarem normais. Mas o que é ser normal? Quais os referenciais que demonstram o desvio entre o certo e o errado? Será anormal quem não dorme bem, dorme pouco ou demasiado? Ou a anormalidade parte de quem observa? Será normal a pessoa comum, cotidiana que se compraz para acabar com o mofo de sua vida, em fazer cartas anônimas ou espalhar boatos falsos?  

A propósito, nos Estados Unidos, o país onde mais se consome remédios para depressão, insônia, neurose etc. foi editado - pela St. Martin Press - o livro Você é normal? (Are you normal?), escrito por Bernice Kanner. Por apenas US$ 6,99, o preço de uma refeição ligeira, você saberá que existe muito mais gente “anormal” do que imagina. As pessoas entrevistadas, segundo Bernice Kanner, tinham o compromisso de não mentir e revelar, sob a segurança do anonimato, coisas que não diriam nem para o pai, a mãe, o marido ou a mulher. 

As preciosidades colhidas por Bernice nos Estados Unidos mostram a vulnerabilidade, a ausência de altruísmo e outras falhas do caráter dos comuns mortais. Vamos lá: uma em cada quatro pessoas faria qualquer coisa por US$ 10 milhões; uma em cada dez pessoas compra um artigo, usa uma vez e o devolve; 3,9% das mulheres não usam calcinhas; 7,0% das pessoas utilizam o próprio cabelo como fio dental; 10% trocam etiquetas de preços de lojas para pagar menos; 10% admitem já ter visto fantasma; 23,5% não dão descarga quando vão ao banheiro; 25,0% furam filas; 28% admitem fazer xixi na piscina; 28% deixaram de declarar imposto de renda alguma vez; 29% já furtaram em lojas; 39% fofocam em salas de espera;54% reembrulham presentes recebidos e dão para outras pessoas; 58% já inventaram doença para não ir trabalhar; 60% dos homens cospem em público. 

Isto tudo nos faz lembrar uma frase de Millôr Fernandes: “Como são maravilhosas as pessoas que não conhecemos bem” ou aquela outra de Bertold Brecht: “Um bom país para viver é aquele em que as virtudes não são necessárias e no qual todos podem ser pessoas comuns, medianas e até mesmo um pouco covardes.”
 

Fonte: Ag. Carta Maior, João Soares Neto, 16/3/2007.

 



Auto-retrato

Peter Kramer

Autor do best-seller Ouvindo o Prozac, o psiquiatra americano Peter Kramer, de 57 anos, acaba de ter seu quinto livro lançado no Brasil. Em Enfrentando a Depressão (Editora Melhoramentos), Kramer, professor da Universidade Brown, alerta para os perigos envolvidos na glamourização da doença. Ele deu a seguinte entrevista à repórter Anna Paula Buchalla.  

 

EM SEU NOVO LIVRO, O SENHOR DIZ QUE A DEPRESSÃO EXERCE UMA ATRAÇÃO PODEROSA. QUAL É ESSE APELO?

Certos sintomas como o desânimo e a apatia remetem a uma estética decadente que confere certo charme aos doentes. Existem homens que são especialmente atraídos por mulheres depressivas e vice-versa – e esse apelo vai além da simples necessidade de cuidar de alguém. A visão romântica da depressão está profundamente entrelaçada com a visão do amor romântico. É importante, porém, deixar claro que não há nada de bom na depressão. Os depressivos tendem a ter menos contatos sociais, a separar-se mais e a conceber menos filhos.    

É ESTRANHO, PORTANTO, QUE SE EMPRESTE GLAMOUR À DOENÇA.

Pois é: pergunte a uma pessoa se a depressão é uma doença e ela provavelmente responderá que sim. Mas, quando indagamos se a depressão deveria ser erradicada, as respostas costumam ser ambivalentes. Se a pergunta fosse sobre o fim de uma doença como a artrite, ninguém hesitaria em responder que, óbvio, ela deveria ser eliminada. Há, no entanto, muita gente que simplesmente defende a existência da depressão. O motivo para essa defesa é que, para além de uma visão estritamente romântica, ela continua a ser associada a personalidades de grande criatividade e profundidade intelectual – da mesma forma que a tuberculose no século XIX. Trata-se de uma bobagem: as evidências que associam depressão a inventividade são frágeis. Essa associação, aliás, seria mais palpável entre os portadores de distúrbio bipolar e epilepsia – e não se vê ninguém defendendo nenhuma dessas duas doenças. Numa cultura que priorizasse o combate à depressão, a glamourização da doença pareceria, na melhor das hipóteses, lamentável. E, na pior, cruel.    

O SENHOR NÃO ESTÁ EXAGERANDO?

É claro que não. A depressão é uma condição grave, debilitante e associada a anormalidades na anatomia cerebral. Ela é fator de risco para derrames, infartos, distúrbios hormonais e osteoporose. A depressão se manifesta em idades precoces, é recorrente e progressiva – e a cada episódio pode deixar seqüelas graves. Os deprimidos são incapazes de experimentar o prazer, têm sentimentos de culpa, problemas de sono e de apetite, diminuição da memória – tudo isso em um nível altíssimo de perturbação.

COMO O SENHOR AVALIA OS ANTIDEPRESSIVOS SURGIDOS DESDE O LANÇAMENTO DO PROZAC, NO FIM DOS ANOS 80?

Todos os remédios da classe dos inibidores de recaptação de serotonina, da qual o Prozac faz parte, são, em minha opinião, antidepressivos medíocres. Mas eles fazem com que os pacientes se sintam mais confiantes socialmente. Não é pouco, reconheça-se. No tratamento efetivo da depressão, no entanto, vários pacientes respondem muito melhor aos antidepressivos mais antigos – os da classe dos tricíclicos.    

ESTAMOS LONGE DE CONHECER AS CAUSAS DA DEPRESSÃO?

Sim, ainda sabemos pouco sobre ela. Mas houve avanços evidentes nos últimos quinze anos. Até algum tempo atrás, a maior parte das pesquisas em depressão focava nos neurotransmissores, as substâncias químicas que carregam os sinais entre as células nervosas. Agora, a atenção se volta para a saúde individual das células nervosas. Os estudos mostram que a depressão está associada a alterações no funcionamento dessas células. Inclusive já estão sendo investigados remédios capazes de proteger e reparar aquelas que se mostram doentes.

 

Fonte: Rev. Veja, ed. 1999, 14/3/2007.


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