Reforma da Previdência:
Impactos no Ensino Superior Público

 

Donaldo Bello de Souza*
 

Na América Latina, as reformas no âmbito da Previdência Social principiaram, nos idos de 70, com a privatização total do sistema chileno através das Administradoras de Fundos de Pensão, em meio à "liberdade de mercado" e, a um só tempo, profunda repressão social, política e ideológica. Nos anos 80, chegou a vez do Peru, da Colômbia e da Argentina seguirem o chamado modelo chileno, embora de modo parcial, enquanto que, no início da década de 90, Bolívia, Uruguai, Venezuela e México passaram a trilhar esse mesmo caminho. Será que chegou a vez do Brasil? Que marcas serão impressas, de modo específico, no ensino superior público, em meio a hecatombe de seu funcionalismo?

Comparativamente aos trinta anos precedentes, é somente nos anos 90 que o segmento de Previdência Privada toma impulso no Brasil, em meio ao início do enfraquecimento da Previdência Social, pilar da Seguridade Social da nação. No período 1967-1977, correspondente aos dez anos imediatamente anteriores à regulamentação da Previdência Privada no País (Lei no 6.435/77), esta se viu parte integrante da chamada "década perdida", tendo sido duramente afetada pela não adoção da correção monetária. Já nos anos 80, o segmento de Previdência Privada se retrai em função do processo de estagnação econômica do País, sofrendo, ainda, perdas decorrentes das altas taxas de inflação. Finda a primeira metade dos anos 90, na passagem do governo Itamar Franco – Fernando Henrique Cardoso (FHC), as expectativas para a Previdência Privada tornam-se amplas e promissoras. A tão conclamada estabilidade monetária, em paralelo às discussões que se iniciaram em torno da reforma da Previdência Social, passaram a ser tomadas pelos empresários do setor (crescentemente banqueiros) como fatores decisivos para a alavancagem do segmento. No entanto, para surpresa geral, oito longos anos transcorreram e, apesar do grau de desmonte sofrido pelo Estado na era FHC, a Previdência Social, com sua imagem institucional desgastada, ainda vinha resistindo aos reflexos das medidas privatistas e liberalizantes que diretamente afetaram diversos outros setores da vida econômica da nação.

Curiosamente, quando menos se esperava, eis que a Previdência Social passa a ser alvo de novas tentativas de dissolução. Neste novo cenário, surge o tão combatido Projeto de Lei Complementar (PLP) no 09 que, embora atualmente moribundo, pode vir a ter seus princípios subjazendo a outras propostas governamentais congêneres (por um lado, aumento da carência no tempo de serviço e na função e, ainda, da idade mínima para aposentadorias e, de outro, redução dos valores das aposentadorias e pensões, pelo artifício de sua tributação).

De forma sintética, tanto o PLP no 09, quanto outros que poderão dele derivar, trazem implícita e explicitamente a tradicional e perversa noção de que as contas públicas (grosso modo, relação receita-despesa da União) não se equilibram em virtude da progressiva e irreversível crise da Previdência Social. Curiosamente, nos anos 90, essa mesma crise orçamentária era explicada como resultado da ineficiência técnica, econômica e financeira das empresas estatais, o que levou à privatização de mais de 230 instituições federais, cujos recursos auferidos, ao invés de serem convertidos, conforme na época proclamado, em investimentos sociais, se dirigiram ao pagamento dos encargos da dívida interna e, sobretudo, externa (se quer de seu valor principal, mas, essencialmente, dos juros).

Além da dimensão anterior, há de se considerar o estudo realizado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (ANFIP-RJ), reportado por sua diretora, Sra. Clenilce Sanfin, no 22o Congresso ANDES-SN, em março último, que nos traça outra realidade, na qual a Previdência Social, ao invés de deficitária e parasitária, consiste numa instância superavitária, que logrou acumular, nos últimos três anos, um saldo positivo da ordem de R$ 96 bilhões. Valendo-se desse e de outros estudos, a professora Elaine Bhering (UERJ) vem enfatizando que a União tem se beneficiado, de um lado, dos saldos positivos relativos ao orçamento destinado à Seguridade Social (como o de R$ 24,4 bilhões, registrado em 1991) e, de outro, de recursos concernentes às próprias fontes de financiamento desta Seguridade (como os desvios de parte do CONFINS e de percentual expressivo da CPMF para outras áreas e/ou finalidades não sociais).

Na educação, e de modo ainda mais específico, na esfera do ensino superior público, há de se esperar profundos e desastrosos impactos decorrentes da efetivação das políticas em questão. Poderão levar, com certeza, à efetivação de aposentadorias em massa, preconizáveis pelo quantitativo atual de solicitações de contagem de tempo de serviço que estão registrando os setores de RH das instituições de ensino superior públicas (federais e estaduais) – veja-se que o Informativo Asduerj (14 a 18 abr. 2003) já noticia cálculos que indicam a carreira para a aposentadoria de cerca de 26% de servidores, entre os quais se incluem cinco reitores de Universidades Federais. A exemplo do que se deu na segunda metade dos anos 90 no Brasil (em meio à promoção de programas de incentivo à aposentadoria), corremos o risco de, além de perder os colegas professores de maior experiência, não virmos a ter suas vagas proporcionalmente preenchidas. Neste caso, testemunharemos o aprofundar de um cenário que há muito se delineia em nosso País: de um lado, o crescimento marcadamente acelerado da Previdência Privada, às custas da tendência à retração da Previdência Social e, de outro, a radicalização do processo de expansão do ensino superior privado, mediante a imolação das instituições de ensino superior públicas, majoritariamente compostas por Universidades. Há cerca de 20 anos atrás, o ensino dito de terceiro grau público respondia a aproximadamente 60% das matrículas, enquanto que o setor privado a não mais do que 40%, quadro contrastante ao atual, no qual este último chega a atender a mais de 70%, enquanto que as instituições públicas federais e estaduais, em meio aos impactos de uma política governamental a elas crescentemente desfavorável, não chegam a responder aos 30% das matrículas restantes. Nos cinco anos que se sucederam à aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 –, se verifica um aumento de cerca de 54,5% na quantidade de instituições de ensino superior no Brasil (de 900 entidades, em 1997, para 1.391, em 2001), acompanhado de um incremento igualmente expressivo de cursos superiores (100%) e de matrículas (55%) – no primeiro caso, praticamente dobrou a quantidade de instituições, passando de 6,1 mil para aproximadamente 12,2 mil e, no segundo, concernente às matrículas, de 1,95 milhões para 3,03 milhões, ambos também considerados no período 1997-2001, segundo Censo do Ensino Superior realizado pelo MEC/INEP e IBGE. É assim que a propalada expansão do ensino superior brasileiro ocorre: pela debilitação das instituições públicas, pelo minguar progressivo e lento de seus recursos e prestígio social, em paralelo à oxigenação das instâncias particulares que, salvo algumas exceções – em especial as confessionais e as poucas particulares com tradição acadêmica –, pouco contribuem para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do País.

Por tudo isto e mais um pouco, o NÃO e a RESISTÊNCIA ORGANIZADA à reforma da Previdência que se pretende levar a efeito nos termos acima postos representa muito mais do que mero defendimento de interesses corporativos, de cunho estritamente econômico – ou, como diria Antonio Gramsci (1891-1937), "egoísta-passional". Exprime, portanto, uma atitude ético-política em torno do fortalecimento da Universidade pública e gratuita e, por conseguinte, da excelência de seus cursos, das pesquisas que realiza e das ações de extensão que viabilizam o rompimento de suas fronteiras. Ainda evocando-se Gramsci, vale não perder de vista que "Precisamos ser pessimistas na analise da situação e otimistas ao planejar nossa intervenção de massa".  

* Doutor em Educação, coordenador no Núcleo de Projetos Especiais (Nupes) da Faculdade de Educação da Uerj. 

 

Fonte: Folha Dirigida, 06/05/2003 - Rio de Janeiro - RJ



 

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