Reforma universitária "republicana"
Roberto Macedo*

 

Escrevendo nesta página no dia 27 do mês passado, o ministro da Educação, Tarso Genro, chamou de democrático e republicano o projeto de reforma universitária proposto por seu ministério. Isso me levou a refletir sobre o significado do termo republicano, que também vem sendo usado pelo Executivo federal para justificar outras propostas e ações.

Com esse objetivo recorri ao Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, onde fica claro que o termo oferece espaço para diferentes interpretações. Segundo Nicola Matteucci, que escreveu o verbete República, na sua origem romana o conceito de res publica "... coloca em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade..." Mas na Idade Moderna também foi usado para designar até monarquias quando assentadas numa "... constituição em harmonia com os direitos naturais...", conforme a interpretação de Kant.

Na cultura do século 18, prossegue o verbete, o mito da República passou a ser "...estreitamente ligado à exaltação do pequeno Estado, o único que consente a democracia direta, reconhecida como a única forma legítima de democracia", com a República de Genebra sendo um caso clássico desse modelo.

Com as revoluções democráticas da segunda metade desse século, vieram as primeiras grandes Repúblicas, os EUA e a França. Por sua vez, as revoluções socialistas do século passado produziram o modelo tipificado pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nele, um partido único, o comunista, auto-investido como a "vanguarda do proletariado", concentra todos os poderes, ficando uma República desse tipo longe da concepção original e autêntica do termo, na qual o "... o Estado republicano constitui sobretudo um ordenamento jurídico destinado a tutelar e garantir os direitos dos cidadãos". Evidentemente, não há como identificar o interesse comum e esses direitos num sistema de partido único, com o autoritarismo que vem com ele.

O verbete conclui afirmando: "Os regimes autoritários, que possuem a aparência de Estados republicanos, são republicanos mais de nome que de fato, já que o termo republicano esteve sempre ligado à origem e legitimação populares do poder de quem substituiu o rei..."

Dado esse quadro, percebe-se que qualificar algo de republicano por si mesmo não quer dizer muita coisa, pois depende do modelo que se tem em mente. Como o ministro não explicitou o que inspirou o projeto, tirarei minhas próprias conclusões pelo que entendi ao ler o documento. O momento é de debate do projeto, inegavelmente um bom aspecto de seu processo de encaminhamento, o que estimula contribuições nessa linha.

A idéia de gestão "democrática e colegiada" é um dos traços marcantes do projeto, que nas universidades federais impõe a escolha do reitor e do vice-reitor mediante eleição direta pela comunidade universitária. Ora, isso retroage à referida idéia da República "como exaltação do pequeno Estado", com cada universidade federal se isolando como uma delas. Somos, entretanto, uma grande República, na qual não é republicano nem democrático criar essas "Repúblicas universitárias" sem que o Executivo federal tenha alguma influência sobre o poder constituído dentro delas.

Na mesma linha da gestão "democrática e colegiada", viria nas universidades um novo conselho, o Comunitário Social (CCS), para "... assegurar a participação da sociedade em assuntos relativos ao ensino, à pesquisa, à administração e ao planejamento da universidade...", com várias prerrogativas listadas em cinco itens, constituído pelo reitor "... e, sempre com participação majoritária, por representantes de entidades de fomento científico e tecnológico, entidades corporativas, associações de classe, sindicatos e da sociedade civil".

No artigo citado, o ministro Tarso Genro, ao mencionar as organizações que poderiam participar do CCS, citou o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e outras, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM).

Ora, o que tem isto de republicano? Não há nenhuma garantia de que dessas instituições virão à universidade contribuições próximas do ideal republicano do bem comum. Ao contrário, o mais provável é que tais organizações venham a defender seus próprios interesses, com o MST a reivindicar o ensino da ocupação de terras e a OAB e o CFM a pleitear restrições quanto à ampliação do quadro de profissionais que representam.

Na realidade, essas idéias de gestão universitária "democrática e colegiada", conquanto muito simpáticas ao PT, não se coadunam com valores e práticas que as melhores universidades do mundo cultivam e que demonstraram servir melhor ao bem comum, como o respeito à meritocracia, a gestão não autoritária, mas convenientemente hierarquizada, a busca da excelência no ensino e na pesquisa e da eficácia e eficiência no alcance de seus objetivos. Assim, as diretrizes do projeto são mais as idéias de um partido que quer impor sua visão à sociedade, numa atitude mais próxima do modelo das ex-Repúblicas socialistas, cuja falência foi sintomática da sua ineficácia.

Assim, infelizmente sou levado a concluir, parafraseando Matteucci, que se trata de um projeto autoritário, ao qual se quer dar a aparência de republicano, mas que não é republicano de fato. Se não for substancialmente modificado pelo Ministério da Educação, com base no debate em andamento e nas sugestões que estará recebendo até o final do mês, a esperança é que o Congresso Nacional o transforme num projeto republicano de fato e de direito.  

* Roberto Macedo - Economista (USP), com doutorado pela Universidade de Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 

Fonte: O Estado de S. Paulo, 10/02/2005


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