Reforma ou "embromação"?

 

Embora as autoridades educacionais continuem afirmando que seu projeto de reforma universitária é apenas um "borrão" que deverá ser "aprimorado" a partir de sugestões enviadas pela sociedade, nem o presidente Lula parece levar essa afirmação a sério. Tanto que, ao patrocinar um debate sobre o tema, no Palácio do Planalto, ele praticamente só convidou representantes de corporações e movimentos sociais dispostos a aplaudir a iniciativa do governo. E, no decorrer dos debates, não escondeu sua irritação quando o professor Ênio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma entidade insuspeita pelo apoio que sempre deu ao PT, reclamou da ausência de dirigentes estaduais no evento, cobrou maior envolvimento dos Ministérios da Ciência e Tecnologia, Cultura e Desenvolvimento Industrial e fez duras críticas ao projeto do governo.

Para Candotti, obrigar as instituições de educação superior a definir seus cursos e pesquisas em função de determinados interesses sociais, como propõe o Ministério da Educação (MEC), é desvirtuar suas funções básicas. "Executar políticas públicas é dever do Estado. À universidade cabe o ensino, o que já é muito", afirmou. E, segundo ele, condicionar a política acadêmica a opiniões, sugestões e pressões de grupos alheios à vida universitária, por meio de conselhos consultivos, é tumultuar seu processo decisório. "Não adianta fazer uma coisa vaga, um conselhão, que se reúne, mas não tem nenhum poder de decisão", disse ele. "Do jeito que (o projeto) está, é apenas embromação", concluiu.

De fato, se tivesse um mínimo de consistência, a esta altura o projeto já teria conseguido obter algum apoio digno de nota. No entanto, à exceção dos aplausos fáceis e interesseiros da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Sem-Terra (MST), o que se tem são críticas cada vez mais contundentes contra ele. Analisando as diretrizes do projeto, em artigo no Estado de sábado, o filósofo, jurista e educador Miguel Reale afirma que ele peca por não saber nem mesmo o que é uma Universidade. "Ela é a seleção comunitária do saber realizada por especialistas em todos os ramos da ciência, com base em processos de investigação e de pesquisa dotados de metodologia própria", diz ele, lembrando a importância da meritocracia na vida acadêmica - um princípio que o projeto despreza, em nome do "participacionismo político".

"Entre universidade e sociedade há uma vinculação essencial", conclui o ex-reitor da USP. Contudo ela deve resultar não de interferências arbitrárias de sindicatos ou corporações, mas de "uma vivência própria, à medida que na coletividade vão surgindo problemas resultantes das mutações operadas no desenvolvimento tanto da vida comum como progresso de estudos sobre a realidade material e espiritual". Só "uma visão ignara" pensaria em sujeitar as universidades a interesses políticos, "sem perceber que elas já se acham no seio da coletividade, recebendo dela o que há de significativo, mas através de meios e processos seletivos de conhecimento e valoração que só a ciência proporciona".

Além de suas graves falhas conceituais, o projeto peca por suas contradições. Também em artigo no Estado de domingo, o ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza mostra que, apesar de enfatizar a educação como instrumento de justiça social, o projeto não trata do que mais interessa aos jovens oriundos dos setores desfavorecidos da sociedade, ou seja, a adequação entre os currículos e as exigências do mercado de trabalho, no âmbito de uma economia cada vez mais dinâmica e competitiva, e o uso das novas técnicas de informação como instrumento de ensino e aprendizagem. E, por estarem seus autores mais preocupados com proselitismo ideológico do que com educação eficiente, o projeto também não trata de cursos noturnos, de cursos de curta duração, de cursos presenciais e a distância e de cursos com diplomas intermediários, justamente os que proporcionam o preparo mínimo para que jovens pobres possam ingressar na economia formal.

No evento em que "fechou a cara" para o presidente da SBPC, Lula disse que o projeto de reforma universitária "não deve ser do MEC, mas de um conjunto de pessoas que representam a sociedade brasileira". Se for honesto em seu propósito e quiser honrar essa afirmação, ele tem de alargar seu círculo de interlocutores, dispensando os áulicos e chamando quem entende de educação, para dialogar. Quanto mais resistir a essa providência sensata e óbvia, mais seu governo, em vez de revolucionar o ensino superior, pode levá-lo ao caos.
 

Fonte: O Estado de S. Paulo, Editorial, 02/03/2005.


Opiniões sobre os artigos ...


Coletânea de artigos


Home