UNIVERSIDADES PÚBLICAS
Resistência à privatização segue forte em São Paulo

 

As fundações “de apoio” às universidades públicas, muitas
vezes, não encontram caminho livre para atuar. Entraves
legais são atestados pelos órgãos de fiscalização, como TCU
e MP, que têm procurado corrigir as distorções

SÃO PAULO – As fundações “de apoio” às universidades públicas, muitas vezes, não encontram caminho livre para atuar dentro das universidades. Entraves legais são atestados pelos órgãos de fiscalização, principalmente o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público, que têm identificado e procurado corrigir as distorções existentes.

O debate tem se orientado em torno de duas posições opostas: de um lado, a defesa das fundações como instrumento destinado à captação de recursos para a universidade e seus docentes, de modo mais flexível do que permite a legislação que rege as entidades públicas. De outro, a crítica com base no argumento de que as fundações servem ao processo de privatização da universidade, apropriando-se do nome desta e interferindo na orientação das atividades de ensino e pesquisa.

Na segunda reportagem sobre o tema, disponibilizada pela Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes-SN), há um panorama completo da situação atual no Estado de São Paulo. As três universidades estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp, já somam 53 fundações “de apoio” ao todo. Longe do aparente sucesso veiculado pelos números, a matéria mostra os consecutivos reveses sofridos pelas fundações, que pode sinalizar para uma maior resistência à inserção das entidades no campus. 

 

Resistência à privatização das universidades públicas segue forte em SP

Ministério Público Estadual investiga conflito de interesses
na USP. Crise financeira e política expõe Fundação Zerbini

As três universidades estaduais de São Paulo concentram, juntas, nada menos do que 53 fundações privadas “de apoio”. São quatro na Unicamp, 17 na Unesp e 32 na USP. Várias delas estenderam os tentáculos aos campi de universidades federais, credenciando-se, para tanto, junto ao MEC. Algumas tornaram-se proprietárias de imóveis em áreas nobres, realizando suas lucrativas atividades dentro e fora dos campi. De modo geral, as maiores fundações “de apoio” continuam faturando dezenas de milhões de reais todo ano. Mas, em que pese tal pujança, elas têm sofrido alguns reveses, sintoma de que continua forte a resistência à privatização das IES públicas.

O Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (CSMPE) determinou à Promotoria de Fundações da Capital, em abril de 2006, que demonstre, “mediante juntada de cópias das respectivas portarias de instauração”, que instaurou inquéritos civis e que está investigando, caso a caso, a existência de conflito de interesses nas fundações privadas autodeclaradas de apoio à USP.

O caso teve início em 2005, quando a Associação dos Docentes da USP (Adusp) ingressou com representação na Promotoria de Fundações, pedindo providências contra o exercício paralelo de cargos, por docentes da USP, na universidade e nas entidades ditas de apoio. Os estatutos de muitas das fundações vinculam seus próprios cargos privados de diretores e conselheiros a determinados cargos públicos de direção da USP: reitor, diretores de unidades, chefes de departamento (vide quadro na p. 46). Assim, tais estatutos criam obrigações para funcionários públicos, o que é ilegal, e com isso geram situações típicas de conflito de interesses.  

Em janeiro de 2006, o promotor Paulo José de Palma, responsável pelo caso na Promotoria de Fundações, decidira arquivar a representação da Adusp, determinando ao mesmo tempo, porém, “a instauração de vários procedimentos individualizados em desfavor das entidades fundacionais de apoio”. O CSMPE, a quem cabe por força da lei rever todas as decisões de arquivamento, confirmou a decisão de Palma, mas fez questão de “pagar para ver”, exigindo comprovação de que a investigação está efetivamente em curso. Além disso, já havia, em decisão anterior, quebrado o sigilo do processo, determinado pelo promotor.

Também por iniciativa do Ministério Público Estadual, tramita na 6ª Vara da Fazenda Pública, desde junho de 2005, uma ação civil pública contra a oferta de cursos pagos na USP, “para que de forma definitiva” a USP seja proibida “de realizar cursos de pós graduação lato ou stricto sensu (especialização, aperfeiçoamento, mestrado ou doutorado) em suas instalações ou fora dela, mediante cobrança de valores monetários (mensalidades) seja por ela mesma, seja por intermédio de entidades de direito privado (fundações, associações etc.)”.

A ação também pede que a USP seja proibida de “emprestar, ceder, dar ou fornecer a qualquer título seu nome para emissão de certificados em cursos de pós-graduação (especialização, aperfeiçoamento, mestrado ou doutorado) realizados por entidades de direito privado, mediante cobrança de valores monetários, conveniadas com ela ou não”. Seu autor é o promotor Luis Fernando Rodrigues Pinto, da 8ª Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital, que atendeu a uma representação da Adusp e de Márcio Augelli, então professor da Unesp.

Derrota institucional

Na USP, a vitória da professora Suely Vilela na disputa pela Reitoria, em fins de 2005, foi percebida como uma derrota das fundações privadas. O principal preterido foi o então vice-reitor, professor Hélio Nogueira da Cruz, partícipe da conhecida Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e defensor do sistema fundacional. Suely, até então pró reitora de Pós-Graduação, teve atuação decisiva no veto do Conselho de Pós-Graduação (CoPGr) à criação de novos cursos pagos na USP, em 2002, veto esse que contrariou fortes interesses.

Os setores críticos à privatização da USP cobram da Reitoria novos avanços, mas não há sinal deles no horizonte. Enquanto isso, entidades privadas de maior porte, como a Fundação Instituto de Administração (FIA) e a Fundação Vanzolini, investem na política de “um pé em cada canoa”: fazem migrar para suas imponentes sedes extra-campus o próspero filão dos cursos pagos, oferecendo-os sem o “selo USP”, procurando driblar o recolhimento de taxas pela universidade. Ao mesmo tempo, buscam cercar-se de todo tipo de declarações de “utilidade pública”, municipal, estadual e federal, com o intuito de garantir isenções fiscais — e também a sobrevivência, no caso de uma eventual retirada definitiva.

Outro caso de repercussão negativa para a imagem tão zelosamente cultivada do sistema fundacional veio à tona nos meios de comunicação, abruptamente, em dezembro de 2005, quando se soube do aberto confronto entre a cúpula do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP e a direção do Instituto do Coração (InCor) e da Fundação Zerbini. O Conselho Deliberativo do HC destituiu da direção do InCor o professor José Franchini Ramires, principal dirigente de fato da Fundação Zerbini, que gerencia integralmente o InCor.

A Fundação Zerbini, que privatizou parcialmente o InCor instituindo nele a “segunda porta” (atendimento privilegiado a pacientes particulares e conveniados), acumula uma dívida superior a R$ 200 milhões, cuja gênese está num empréstimo concedido a ela pelo BNDES, em 1997, de R$ 69 milhões, para construção do chamado Bloco II, que se destinaria a atender prioritariamente os convênios. A fundação, que vem enfrentando déficits crescentes desde a virada do milênio, notabilizou-se por seu envolvimento em convênios com governos (federal, de São Paulo e do Distrito Federal), pela criação de empresas e por uma série de atividades que fugiam de suas finalidades estatutárias de apoio ao InCor (Revista Adusp 24, dezembro de 2001, e 36, janeiro de 2006). 

Por algum tempo, Ramires conseguiu manter-se no cargo de diretor graças a uma liminar da 7ª Vara da Fazenda Pública, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo cassou-a, em março de 2006. Ramires entrou com recurso, que seria julgado em maio. Durante anos, o professor acumulou seus cargos no InCor e na Fundação Zerbini com o de vice-presidente da Comissão Especial de Regimes de Trabalho (Cert), da USP. Caberia à Cert fiscalizar o cumprimento do regime de dedicação integral (RDIDP), mas ela se tornou tristemente célebre pela prática de rebaixar os vencimentos de docentes que não conseguiam comprovar uma alta produção de papers.

“Cada um desses fatos é uma vitória”, avalia o professor Américo Kerr, ex-presidente da Adusp, indicado pela entidade para falar sobre a questão das fundações privadas ditas de apoio. A principal conquista, diz ele, foi ter impedido que se consolidasse, na comunidade da USP, a idéia de que essas entidades são benéficas. “As nossas matérias, que são bem fundamentadas, conseguiram pôr uma cunha nessa discussão”, comenta o professor, em referência à série de reportagens que a Revista Adusp vem realizando, desde 2001, sobre a atuação das dezenas de fundações que se relacionam com a Universidade.

Posicionamento crítico X mercado

Para o ex-presidente da Adusp, a presença das fundações privadas na Universidade pública está modificando de modo predatório a estrutura de poder na academia, levando a uma progressiva privatização do ensino público. O perigo principal seria a perda da capacidade crítica dos pesquisadores e o distanciamento do interesse social, em proveito das simples necessidades do mercado.

Exemplo citado por ele: num corredor da Faculdade de Odontologia, um preocupado professor se questiona: “Vou dar um curso para dentistas para uso de laser no lugar das brocas — uma coisa com que o aluno vai ganhar dinheiro. Como é que eu vou fazer isto de graça?”. Ao invés de responder de pronto à própria indagação, ele prefere se aprofundar no questionamento: “A Universidade dá cursos, forma engenheiros, já formou aquele dentista, forma biólogos, físicos, filósofos... Por que ela faz isso tudo de graça?”

Para o professor Kerr, na verdade nada disso é “de graça”, pois a Universidade está baseada no conceito de “educação pública, gratuita, um direito de todos”. O acesso a esta educação, explica o professor, se dá de acordo com a capacidade do aluno, o que é constitucional. Sob este prisma, finalmente, é possível voltar à questão inicial e dar uma resposta que talvez ajude nosso seu hipotético colega: “O que a Universidade tem que ver é se é prioridade para ela investir na questão do laser, ou seja, se isto representa um avanço social. Se não representa, ela não devia nem investir nisso”.

A ausência deste questionamento traz um grande risco, no entender do ex-presidente da Adusp: “O que se alimenta com isso é que, nas áreas especializadas, você tem uma omissão da especialização no curso normal para fazer com que o estudante se dirija ao curso pago para complementar a educação dele. A Universidade passa a considerar seu aluno como um mercado para fazer dinheiro”.

A entrada do recurso privado ameaça a autonomia do pesquisador. “É direcionar o que você vai fazer, não do ponto de vista acadêmico, social, da nação, mas de negócios”, analisa o professor, para quem é difícil sair imune das gordas ofertas que as fundações propiciam. “Você chega a ter complementações — nós avaliamos e, até agora, não foi contestado — no caso da FIA, da ordem de R$ 300 mil ao ano. São complementações polpudas. É um dinheiro muito grande, que dá total direcionamento. Você faz o que o mercado quer”, fustiga.

A saída estaria em manter o foco no interesse social: “Não se trata do interesse da Volks, da Ford, não. A sociedade é o cidadão. A maioria dos cidadãos”. Neste sentido, exemplos de como não proceder são abundantes na USP: o professor Kerr recorda que a atuação da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), contratada pelo Banco Central, em 1998, para preparar a privatização do Banespa, acabou por favorecer o grupo espanhol Santander. Neste episódio a Fipecafi, embora dispensada de licitação por “notória especialização”, terceirizou o trabalho, repassando-o para uma consultoria, como comprovado pela CPI do Banespa. “Não me parece que este seria um trabalho de interesse público”, diz o professor.  

O posicionamento crítico não irá isolar a Universidade, como dizem os defensores das fundações, mas aproximá-la daqueles que realmente são os seus objetivos, sustenta o professor. “A Universidade tem de ser crítica. Ela pode até resolver um problema pontual, porque eu quero que qualquer carro que se fabrique seja o melhor possível, mas eu quero que se repense esta política de entupir o mundo de carros”, exemplifica.

Burla por ordens superiores

“Você não pode ter dirigente da instituição pública, que assina por ela, na coordenação do ente privado com o qual ele faz um acordo. A quem ele vai beneficiar? A que interesses ele está servindo?”. Assim o ex-presidente da Adusp comenta a ocorrência de conflito de interesses que será objeto de diligências do MPE nas fundações privadas. “Situações deste tipo só se tornaram possíveis porque se tornou lugar comum na Universidade pública a idéia de que é necessário criar modos de burlar a burocracia”, afirma ele. “Você quer burlar a necessidade de seguir os padrões de gerenciamento público, burlar a questão do tempo integral, burlar a gratuidade do ensino”, enumera.

O professor Kerr adverte que a responsabilidade não é unicamente da Universidade, pois a burla, muitas vezes, parte de ordens superiores: “O governo, na medida em que é ele quem distribui o dinheiro, não só aceita as irregularidades, como alimenta e até obriga a fazer”. Ele menciona o caso da Finep, que, para transferir recursos à Universidade, “obriga que isso seja feito através de fundação”. Segundo ele, uma das razões para que a USP criasse a FUSP, “a mais oficial das fundações da Universidade”, foi exatamente poder receber este dinheiro nas unidades que não possuem fundações. “É uma pressão governamental para abrir este canal de privatização das universidades”, diz.

“A Constituição Federal veda a cobrança de mensalidades em todo o ensino oficial”, defende o promotor Eduardo Martines Júnior, membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP). Martines foi o principal responsável pela decisão do Conselho de proibir a criação de dois cursos de especialização propostos pela Faculdade de Medicina de Rio Preto (uma instituição de ensino superior estadual isolada), em 2005, e que seriam realizados em parceria com a Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão de Serviços à Comunidade (Faep).

Este tipo de decisão, segundo o conselheiro, tem sido recorrente, e pode se firmar como uma determinação geral do CEE-SP. Para que isto aconteça, Martines propôs, em setembro de 2005, que o Conselho normatize a questão. Uma das principais irregularidades envolvidas, diz o conselheiro, é o fato de que as fundações realizam este tipo de curso utilizando o nome das instituições públicas. Ou seja, as faculdades públicas, no entender do conselheiro, estariam “terceirizando” as autorizações dadas, seja pelo MEC, seja pelo CEE-SP.

A atitude do CEE-SP colocou em evidência, ainda, um dispositivo da Constituição Estadual paulista até então pouco conhecido: o artigo 246, que “veda a cessão do uso de próprios públicos estaduais para o funcionamento de estabelecimentos de ensino privado de qualquer natureza”. Em 2003, baseado no artigo 246, o CSMPE já havia determinado o desarquivamento de uma representação contra a oferta de cursos pagos na Unesp de Guaratinguetá, pela Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico-FDCT, e ordenado abertura de inquérito civil.

Fonte: Ag. Carta Maior, por Almir Teixeira, 31/07/2006.


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