A revolução da decência
Lya Luft*

 

"Podemos usar essa tremenda crise para mudar.  Nossas dores de
 agora podem ser dores de crescimento, não de naufrágio, para
 assumirmos de uma vez por todas o nosso papel
 em relação ao nosso país"

 

Na faxina iminente e urgentíssima em nossa política, burocracia e várias instituições, em nosso modo de escolher, eleger, governar, atuar e administrar, a imprensa está tendo um papel magnífico.

Ninguém mais pode dizer "Eu não sabia" nem se fingir de inocente. Os problemas, a gente adivinhava que existiam, embora poucos imaginassem quantos e de que gravidade. Hoje eles saltam na nossa cara em jornal, revista, rádio e televisão, feito monstrinhos de filme de ficção científica, grudando na nossa perplexidade. É salutar, ainda que doa. Pois a ignorância e a desinformação são humilhantes.

Não podemos querer ficar em paz enquanto tudo não for clareado e limpo. Não há nada de divertido em sermos, como disse alguém, um país de rabos presos: muitos políticos que dançam feito macacos, segurando um o rabo do outro... A idéia seria de rir se não fosse de chorar.

Somos passageiros de uma nau cujos mandantes, se nada sabiam das rachaduras no casco, estavam seriamente alienados daquilo que deviam governar; se sabiam e não tomaram providências, não mandaram investigar a fundo nem prestaram contas ao povo que os elegeu, foram gravemente omissos e inegavelmente cúmplices.

De qualquer maneira o barco em que estamos metidos aderna fortemente, e não sabemos para que lado cai ou para que margem poderia se dirigir. Para não nos atolarmos num esquerdismo radical e ultrapassado, nem girarmos no redemoinho da anarquia e do desgoverno, é preciso – urgentemente – abrir os olhos, agir e reagir, implantar em nossa vida pessoal e neste nosso país o governo da ética. Ética, do grego ethos, "costume", é um conjunto de bons costumes – isto é, decência.

O Brasil não é uma abstração ou um mapa: são quase 200 milhões de vidas, gente que batalha no seu duro cotidiano e não merece ficar à mercê dessa ópera-bufa, tendo nos bastidores dramas morais e cinismos espetaculares, facilitados pela cumplicidade e pela omissão.

A ignorância é a mãe de boa parte de nossos males. Precisamos ser educados, informados, para compreender e escolher. Idéias são fruto de educação. Apesar da imoralidade de muitos, poderemos ter esperança se nos tornarmos um povo mais ético – habituado à honradez, implacável quando se trata de escolher seus representantes e até mesmo as condições da própria vida pessoal.

Não quero fome zero, mas desinformação zero. Trabalho (que traz dignidade) e educação (que nos esclarece e nos torna capazes de optar) deviam ser nosso objetivo premente agora. Não mais palavrório vazio sobre democracia, mas seu exercício verdadeiro, com lucidez e determinação. Uma bela reforma, também em cada um de nós. Microrrevolução, em que cada um tenta ser decente, manter-se decente e pensar sobre o que é decência, a começar na família – que, mesmo com todas as mudanças sociais, continua existindo como o quartel-general de nossas idéias e atitudes básicas pelo resto da vida.

Simultaneamente, urge transformar – agora, hoje, não amanhã – a escola elementar e a secundária, onde se capacitam crianças e jovens a ser cidadãos dessa democracia ética. Com professores valorizados e preparados, capazes de preparar seus alunos para questionar, escolher bem e viver segundo regras éticas. Uma escola que não finja ser uma espécie de pseudofamília ou um lugar insosso, como se estudar fosse a beirada fria e desinteressante do mingau da formação de cidadãos prestantes.

Por todo lado, estruturas abaladas e ídolos de barro rachados, confusão e covarde busca do interesse próprio: qualquer recurso vale para salvar a pele. Mas também estamos despertando do torpor e da ilusão que infantilizam. Ainda acredito que a gente pode usar essa tremenda crise para mudar: nossas dores de agora podem ser dores de crescimento, não de naufrágio, para podermos participar, escolher, fiscalizar e assumir de uma vez o nosso papel em relação ao nosso país.

Esta é a hora.
 

* Lya Luft é escritora.  

Fonte: Rev. Veja, Ed. n. 1913, 13/07/2005.


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