IURD vs. IMPRENSA
O segundo chute na santa

 
 

 

A decisão da Igreja Universal do Reino de Deus de intimidar a imprensa por meio do conjunto orquestrado de ações contra a jornalista Elvira Lobato e diversos jornais – entre eles O Globo, Extra e Folha de S.Paulo – é em si um dos mais graves atentados contra a liberdade de expressão já cometidos no Brasil. Pior talvez tenha sido a iniciativa de usar o jornalismo da TV Record (Domingo Espetacular, 17/2) para desfechar um inédito ataque de 15 minutos contra a repórter da Folha. 

Pior, porque a Record admitiu aí o que vinha tentando negar há anos: a ligação direta entre a emissora e a Igreja Universal. Pior, porque utilizou jornalistas – que deveriam estar ali para praticar jornalismo – com o propósito de participar de uma campanha contra o próprio direito de praticar o jornalismo. Pior, finalmente, porque utilizou a força da televisão aberta no país para disseminar um cardápio de cunho fundamentalista entre camadas particularmente pouco educadas da população. 

A utilização do jornalismo da Rede Record para este fim ergue uma enorme barreira para que a emissora conquiste a credibilidade necessária para demonstrar que seus recentes saltos de audiência não são efêmeros. Essa é uma questão particularmente delicada para o futuro da TV aberta no país – e para a participação dos anunciantes no que vinha sendo uma alternativa à hegemonia da Globo no setor.  Desde que apostou na clonagem da Globo

como meio para ganhar fatias expressivas de sua audiência, a Record se expandiu por todos os lados. Aumentou em quase 50% sua participação no mercado, construiu núcleos de dramaturgia fora de São Paulo e aumentou consideravelmente o seu índice de profissionalização.

Um "milagre" registrado 

A estratégia de se tornar mais parecida com a Globo do que a própria Globo deu certo. Uma das ferramentas mais importantes para isso foi justamente o jornalismo. A emissora ampliou fortemente sua participação nessa atividade e criou a primeira rede aberta de notícias do país. Teve a seu favor uma histórica desconfiança popular em relação ao jornalismo de sua maior concorrente – além do folclórico desinteresse de Silvio Santos em caminhar neste sentido. 

Escancarar o tipo de "jornalismo" que a Record produziu na edição do Domingo Espetacular de 17/2 é de longe o maior erro estratégico cometido pela emissora desde que foi adquirida por Edir Macedo. O preço para consolidar a Record como porta-voz da Igreja Universal, particularmente em meio a um grande movimento de repressão à liberdade de expressão, provavelmente se revelará alto demais para a própria igreja. Seus efeitos tendem a ser mais devastadores que os do chute na santa. 

O episódio, como muitos se recordam, ocorreu em 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora da Aparecida, a padroeira do Brasil. O bispo da Igreja Universal Sergio von Helde atacou uma imagem de Nossa Senhora a pontapés, dizendo que aquilo nada mais era do que um monte de barro, "um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado". Os efeitos foram devastadores. 

Apesar de o programa ter ido ao ar durante a madrugada, a imprensa o repercutiu e a reação popular foi enorme. A Igreja Universal não se manifestou oficialmente, mas o bispo Macedo teve que vir à cena pedir desculpas aos católicos. O bispo von Helde foi transferido para a África do Sul. Mais tarde, correu o boato – nunca confirmado – de que ele havia se convertido ao catolicismo, fato que, de qualquer maneira, a dupla Felipe e Falcão cantou em O Milagre da Santa, gravado em 2000. 

Investida contra a sociedade 

O chute na santa foi também o estopim que a Globo esperava para desfechar uma grande campanha contra a Igreja Universal, que incluía a divulgação de imagens de bispos tramando os métodos para tomar dinheiro dos fiéis, além de denúncias sobre enriquecimento ilícito de membros da igreja. As reações incluíram ainda, ironicamente, o ajuizamento de dezenas de ações por todo o país contra a Universal. 

Os resultados foram menos devastadores do que a Globo esperava. Sobreviver foi quase um milagre, mas ainda assim a igreja levou anos para se recuperar do golpe. Na Record, ninguém mais chutou publicamente santa alguma. Contudo, a influência da igreja junto à programação se tornou cada vez mais explícita. Foi justamente o jornalismo que serviu de aval para manter a aparência de independência da emissora em relação à igreja (com a qual, em tese, a Record não mantinha vínculo algum, exceto o comercial, representado pela compra de espaços durante as madrugadas). 

O fim da era Boris Casoy veio junto com uma campanha agressiva e bem-sucedida para tomar a vice-liderança de um SBT engessado e envelhecido. A Record se fortaleceu e passou a criar atritos politicamente convenientes com a líder, encostando nela freqüentemente e empurrando o mercado nessa direção. A credibilidade de um jornalista como Casoy jamais foi substituída, mas a imagem de independência perdurou em grande medida até o domingo (17/2). 

A execração primária de uma jornalista como Elvira Lobato vai além de picuinhas comerciais com empresas do porte da Globo, da Folha, do SBT. Aponta para a manipulação grosseira de profissionais do jornalismo que atuam dentro da emissora e para a intimidação de jornalistas que atuam fora dela. Isso nada tem a ver com fé, mas tem tudo a ver com ética e com a observância de preceitos constitucionais. Ao atacar a jornalista da Folha com a leviandade com que o fez, a emissora investiu contra a sociedade brasileira e contra a liberdade de expressão que ela conquistou – um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado.
 

Fonte: Observatório da Imprensa, Nelson Hoineff, 26/2/2008.

 


Ataque serial
 

Fiéis entram com ações múltiplas na Justiça em tática para atingir o jornal Folha de S.Paulo

 


O editorial da Folha e Edir Macedo, líder da Igreja Universal e dono da Record: direito de relatar e direito de contestar na Justiça, mas sem abusos.

 

Dois meses depois de publicar a reportagem "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", o jornal Folha de S.Paulo tornou-se alvo de uma enxurrada de ações judiciais pleiteando indenizações por danos morais. Os 56 processos – agora suspensos em função de liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto (veja reportagem) – têm como autores fiéis e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, comandada pelo bispo Edir Macedo, e foram impetrados em fóruns de cidades do interior espalhadas por vinte estados. Embora os reclamantes justifiquem a ação sob a alegação de que se sentiram ofendidos com a publicação da reportagem, parece evidente que os processos são resultado de uma operação organizada pela igreja (a maioria das ações apresenta parágrafos idênticos e algumas tiveram origem em cidades onde a Folha nem sequer circula). Em editorial de primeira página publicado na terça-feira passada, o jornal classifica o episódio de "campanha movida pelo sectarismo, pela má-fé e por claro intuito de intimidação". Outros órgãos de imprensa, como O Globo, do Rio de Janeiro, e A Tarde, da Bahia, também estão sendo alvo de processos movidos por membros da Universal. 

A Igreja Universal do Reino de Deus detém o controle acionário da Rede Record, um conglomerado de 23 emissoras de televisão e quarenta de rádio. Na qualidade de controladora da maior rede de radiodifusão brasileira, é natural que a igreja desperte interesse. É legítimo, portanto, que a Folha queira fazer reportagens sobre os negócios da Igreja Universal. Assim como é legítimo que a igreja reclame na Justiça caso se sinta agredida ou vítima de informações que julgue caluniosas. O que é ilegítimo e inadmissível é que se usem os dispositivos legais não para fazer justiça, mas para retaliar um veículo de informação. O fato de as ações terem sido ajuizadas em diversas e distantes regiões obriga o jornal a mandar repórteres e advogados para dezenas de localidades remotas a fim de participar das audiências. Como disse o juiz Edinaldo Muniz dos Santos, do Acre: "O processo judicial, que é meio de punição e reparação, passa a ser a própria punição". 

Procurada por VEJA, a Igreja Universal declarou, por meio de nota, que "respeita a liberdade de imprensa, porém não admite que reportagens sejam usadas para ofensas". Até agora, cinco dos 56 processos ajuizados por membros da Universal foram extintos por decisão de juízes, sendo Muniz um deles. Em dois desses processos, os magistrados também condenaram os autores por litigância de má-fé. Ou seja, a tentativa de ludibriar a Justiça ou de induzir seus representantes a julgamento equivocado recorrendo a informação falsa ou distorcida. Nesse caso, a de que estariam buscando espontânea e individualmente uma reparação por dano moral, quando tudo indica que os processos são parte de uma operação centralizada pelos dirigentes da igreja. Ao tentar instrumentalizar o Judiciário, a Universal, em sua briga com a Folha, perde a razão.

 

Fonte: Rev. Veja, Lumi Zunica, ed. 2049, 27/2/2008.

 


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