SEMANA DO ÍNDIO ...
Brasil

Selva é com ele

 

Comandante da Amazônia ataca a política de fazer reservas indígenas gigantescas
 

 

Fabio Rossi/Ag. O Globo
Augusto Heleno, no Clube Militar: a política indigenista é "lamentável"

 

O general-de-exército Augusto Heleno Pereira é um dos poucos comandantes brasileiros com experiência em combate. Foi o primeiro chefe da missão de paz da ONU no Haiti. Já ocupou alguns dos postos mais altos da burocracia do Exército. Hoje, é o comandante militar da Amazônia. Na semana passada, o general Heleno usou todo o seu prestígio para atacar a política indigenista do governo Lula. Durante uma palestra no Clube Militar, no Rio de Janeiro, declarou que a demarcação de reservas indígenas na fronteira do país ameaça a soberania nacional. E foi além. O comandante da Amazônia chamou a atual política indigenista de "lamentável" e "caótica", por impedir não-índios de entrar em reservas e por abandonar as comunidades indígenas à miséria depois da demarcação. As críticas, claro, repercutiram mal, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exigiu que o militar fosse disciplinado. Há poucas chances de que isso ocorra e nenhuma de que surta efeito. 

O general Heleno fala com liberdade porque está no topo da carreira, não depende mais de promoções e pode vestir o pijama quando quiser. Em momentos como esse, é comum que os militares soltem a língua. Em 1995, o general Murillo Tavares da Silva malhou um projeto de indenização das vítimas do regime militar. Dois anos antes, seu colega Benedito Leonel invocou a "cólera das legiões" para exigir reajuste nos soldos. Eles, como Heleno, falaram respaldados por seus companheiros de caserna. As Forças Armadas estão justificadamente insatisfeitas com a política da União de entregar territórios vastos e contínuos aos índios, como no caso da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Prova disso é que, dois dias depois do discurso de Heleno, outro general, Luiz Schroeder Lessa, publicou um artigo no qual classifica a criação de reservas na fronteira da Amazônia como "um dos maiores atentados à soberania brasileira com o apoio ostensivo do presidente Lula e a omissão criminosa de seu governo". Do ponto de vista militar, a avaliação é correta. 

Os militares sabem que a Amazônia é uma região de difícil vigilância. De população rarefeita e fronteiras secas na selva fechada, ela se torna extremamente porosa e vulnerável. A doutrina militar defende desde sempre a ocupação e a civilização da Amazônia como a melhor forma de protegê-la. A ameaça de invasão da região por traficantes e terroristas estrangeiros, como os das Farc, é real. Só quem pode contê-la é o Exército. Por isso, é de bom senso sempre ouvir o que os generais têm a dizer sobre a Amazônia.

Fonte: Rev. Veja, Victor De Martino, ed. 2057, 23/4/2008.

 


A farda que seduz a imprensa
Luciano Martins Costa* 

 

A imprensa ainda não conseguiu explicar, para quem vive nas cidades brasileiras, o que realmente acontece na região da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A rigor, o leitor está longe de entender a importância econômica da produção local de arroz, dada a distância entre aqueles arrozais e os grandes mercados consumidores, bem como os efeitos do negócio no desenvolvimento da região. Da mesma forma, o noticiário está devendo algum esclarecimento sobre a influência das reservas indígenas de grandes extensões – ou de latifúndios, produtivos ou não – sobre a questão da soberania nacional nas fronteiras. 

O que os jornais e as revistas demonstraram, nos últimos dias, foi a permanência de certa vocação da imprensa para babar na farda dos militares – e, neste caso, as exceções confirmam a regra. A palestra do general-de-exército Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Amazônia, no Clube Militar do Rio, ocorrida semana passada, ganhou espaços generosos nos jornais e uma página de elogios na revista Veja. O general Heleno, que já havia concedido entrevista à revista Época na primeira semana de janeiro deste ano, falando sobre o mesmo tema da vulnerabilidade das fronteiras amazônicas, foi em seguida advertido pelo ministro da Defesa, a pedido do presidente da República. 

O Clube Militar 

No final dos anos 1980, os jornais davam grande importância ao que se dizia no Clube Militar. Alguns colunistas até costumavam funcionar como canais para "advertências" ou manifestações de desconforto da elite das Forças Armadas com o ritmo do processo de redemocratização do país, manifestadas regularmente sobre o chão de azulejos quadriculados na sede do clube na Avenida Rio Branco. 

O comandante da Amazônia, que adquiriu boa reputação profissional como o primeiro chefe da missão de paz da ONU no Haiti, tem uma influência considerável sobre a opinião da tropa. Mas o que não é assim tão considerável é o peso da opinião da tropa – e assim deve ser no regime democrático. Ao amplificar as críticas do militar em temas complexos como a política indigenista e a questão da gestão territorial do país, a imprensa produz certo desequilíbrio na balança dos poderes. E revela certo saudosismo que não é compatível com os tempos que correm. 

Por essas e outras é que surpreende, de certa maneira, a entrevista publicada pelo Estado de S.Paulo no caderno "Aliás" de domingo (21/4). O entrevistado, Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é apresentado como o mais influente antropólogo do Brasil. Tido, pelo pensador francês Claude Lévy-Strauss, como o fundador de uma nova escola na antropologia, Viveiros de Castro distribui críticas severas aos opositores da criação de grandes reservas, afirmando que essas áreas não aumentam a vulnerabilidade das fronteiras. 

Ele observa, por exemplo, que os produtores de arroz, em cujo nome se levantam os inimigos da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, são apenas seis, e lembra que ninguém se preocupou em questionar o fato de que empresas e cidadãos estrangeiros são donos de porções consideráveis do território nacional, especialmente na Amazônia. 

Vale a leitura. E vale também a observação de que, quando quer, um jornal pode passar por cima de suas próprias convicções e surpreender o leitor com reflexões que o fazem entender que nem tudo é o que parece.
 

* Luciano Martins Costa é jornalista.

Fonte: Observatório da Imprensa, 22/4/2008.

 


Brasil
Seqüestro fajuto

 

Filmes e fotos mostram que o seqüestro de um representante da ONU por
índios cintas-largas foi uma farsa

 

 

Fotos Divulgação
David Martín Castro, da ONU, tomando banho de rio durante o "cativeiro". Outro "refém", o procurador Trindade (à dir.) usa celular dos índios. Ao centro, Nacoça: agora, ele é cacique da Funai.

 

Os cintas-largas, de Rondônia, estão entre as etnias indígenas mais hostis do Brasil. Em 2004, eles massacraram 29 garimpeiros a tiros, flechadas e pauladas. Com esse histórico, não tiveram dificuldade em ganhar as páginas dos jornais do mundo inteiro, em dezembro do ano passado, quando anunciaram o seqüestro de um membro do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, um procurador da República e outras três pessoas. Para libertá-los, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, acorreu até a Reserva Roosevelt, onde ficam suas aldeias, e se comprometeu a atender às reivindicações dos cintas-largas. Na semana passada, VEJA teve acesso a vídeos, fotos e documentos que mostram que o tal seqüestro não passou de uma farsa montada pelos índios com a conivência do procurador Reginaldo Trindade, um dos pretensos reféns. A maior parte do material foi produzida pelos índios. Nele, está uma declaração registrada em cartório pelo cacique Alzak Cinta-Larga, na qual relata que o procurador Trindade se dispôs a ir até a reserva "por sua livre e espontânea vontade" e a ficar lá "até o comparecimento do presidente da Funai". 

A declaração é amparada pelas imagens produzidas pelos cintas-largas nos quatro dias que durou o suposto seqüestro. Nelas, os reféns aparecem livres, leves e soltos. Numa das cenas, que ilustra esta página, vê-se o funcionário da ONU, o espanhol David Martín Castro, muito satisfeito, tomando banho de rio com seus supostos carcereiros. No dia em que deixou a reserva, Martín Castro fez um discurso emocionado em homenagem a seus anfitriões. "Agradeço pelas ‘picanha’ e pela festa", disse. As "picanha" às quais ele se referiu vieram de bois abatidos – um por dia – pelos índios para comemorar sua "visita" à aldeia. Depois do discurso, ao som de palmas e brados de felicitação, os cintas-largas presentearam o espanhol com um colar. O procurador Reginaldo Trindade recebeu tratamento semelhante. Os cintas-largas o hospedaram, juntamente com sua mulher, em uma casa reservada apenas a caciques. Permitiram que ele se comunicasse com o mundo exterior e até deixaram à sua disposição um telefone celular Globalstar. Apesar da mordomia, Trindade nega que o suposto seqüestro tenha sido fruto de um complô. "Não sei dizer se foi seqüestro ou não. O fato é que tivemos nossa liberdade de ir e vir restringida", diz o procurador.

 

 

O principal problema da Reserva Roosevelt é a extração ilegal de diamantes. Os cintas-largas trucidaram os 29 garimpeiros em 2004 porque suspeitaram que eles não estivessem pagando corretamente pelas pedras. Até hoje, ninguém foi punido pelos assassinatos. Um dos motivos da demora é o fato de o Ministério Público ter solicitado um laudo antropológico para atestar se os índios tinham consciência do que estavam fazendo. Mas, desde então, a Polícia Federal não sai dos limites da reserva. Para libertarem os reféns fajutos, os cintas-largas exigiram que os policiais deixassem suas fronteiras e que um de seus caciques fosse nomeado representante da Funai na região. Em janeiro, Márcio Meira, presidente da fundação, nomeou para o cargo o cacique Nacoça Cinta-Larga, um dos indiciados pelos assassinatos dos garimpeiros. Como se vê, esse Nacoça só não é paçoca porque as autoridades da região pouco fazem para impor o respeito às leis. 

Um dos filmes obtidos por VEJA mostra o procurador Trindade, em 2005, em uma reunião com a etnia suruí, também de Rondônia. No encontro, ele diz que sabe que os cintas-largas exploram pedras preciosas e que os suruís extraem madeira ilegalmente. "Quem não sabe que nos cintas-largas está tendo garimpagem ilegal? Agora, eu tenho condição de ir à Justiça, conseguir uma ordem judicial, baixar o Exército e a Polícia Federal lá e botar tudo abaixo?" De acordo com a lei, é justamente isso que Trindade deveria fazer. Mas ele optou por outro caminho. "Sei das dificuldades econômicas de vocês e que vocês estão cansados de só ouvir promessas", diz ele, ao explicar por que deixava os suruís agir como criminosos. Ouvido por VEJA, Trindade nega que tenha chancelado acordos para exploração ilegal de diamantes ou madeira. As imagens obtidas pela reportagem revelam que ele não é o único a ser conivente com os índios. Representantes da Funai e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que têm a obrigação de proteger a floresta, também participaram dos encontros em que foi "aprovada" a exploração ilegal de madeira. Em um dos filmes, um líder suruí conta que eles aprenderam a explorar madeira ilegalmente em 1986 e que seu professor foi o atual líder do governo no Senado, Romero Jucá, na época presidente da Funai. Desde então, a atividade prosperou. Hoje, com a conivência das autoridades, os suruís vendem trinta caminhões de toras de madeira por dia.

 

Fonte: Rev. Veja, José Edward, ed. 2057, 23/4/2008.

 


Coletânea de artigos


Home