Severino não é um acidente  

 

Não deixa de ser esclarecedor que, exatamente os porta-vozes da eleição de Severino, optem agora por qualificá-lo como um
acidente. Está em curso uma tentativa de denunciar um
ambiente de trevas e obscurantismo que estaria ameaçando o país.

 

Severino Cavalcanti não é um acidente. Em primeiro lugar, é o atual presidente da Câmara dos Deputados, eleito em 15 de fevereiro deste ano, sob o apoio e a articulação do PSDB e PFL, entre outros. Em segundo lugar, fato mais antigo que este último evento, Severino é um católico de verdade, ou seja, não vai à missa num dia e a um terreiro de macumba no outro. Disso se segue que, por óbvio, para Severino, o aborto não é admissível em hipótese alguma. Nem mesmo em caso de estupro. Até aqui morreu Neves. Morreu?

Então, qual é o sentido de entrevistar (e transformar cada frase sua num espetáculo) esse senhor, de triste figura, para fazê-lo defender sua doutrina católica, nada estranha, aliás, nos dias que correm, pelo mundo? Qual o sentido da perturbação e do furor – muitas vezes indignado – contra Severino? Quem é mesmo que constrói essa imagem de que é Severino, e não o estupro, como ele acusou, um “acidente horroroso”?

Uma lição de Tomás de Aquino

Uma boa maneira de começar respondendo a essas perguntas, feitas sob a névoa da guerra ideológica que atravessa as sutilezas editoriais em São Paulo, é retornando à escolástica. Nada mais apropriado, para julgar as propriedades acidentais ou substanciais de Severino, do que Thomas de Aquino que, com a nitidez de um girassol, deu conta da seguinte distinção, no seu "O Ente e a Essência", Capítulo Segundo:

“Como ente de modo absoluto se diz das substâncias e, logo, de modo relativo, dos acidentes. Daí que a essência com propriedade e verdade só existe nas substâncias e, nos acidentes, de maneira relativa. Nota: o acidente não é um ser de modo absoluto, porque sempre depende do sujeito no qual está. Portanto, sua essência é sempre relativa à substância na qual se encontra”.

Tratar Severino como acidente, nesses termos, em nada o pode situar sob essa qualidade. Muito pelo contrário. Se o acidente é sempre relativo, ele tem mais com a mudança do que com a permanência. Se o acidente não tem, em linguagem escolástica, subsistência – ou seja, não pode existir independentemente -, tanto mais estranha fica a caracterização de Severino como acidental.

Pois esse senhor não chegou ao poder ontem, nem mesmo no dia 15 de fevereiro. Não está, tampouco, em seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados, não esteve ausente nem deixou de tomar posições e de participar, ativamente do último período da história desse país. Aliás, é precisamente por participar da essência – em sentido escolástico –, do que persevera nas relações políticas e patrimonialistas deste Brasil “republicano em tese” que uma figura como Severino não pode ser adjetivado como acidente. E não deixa de ser extremamente esclarecedor que, exatamente os porta-vozes da sua eleição para presidente da Câmara, agora, optem por essa qualificação.

Uma operação ideológica em curso

É uma operação ideológica sutil que se estabelece em torno da figura patética e explícita do presidente da Câmara. Essa operação, em casos relativos à moral sexual e ao moralismo em geral, ganha por vezes contornos épicos, suscitando, entre os desavisados, um furor republicano deslocado. Pois, sim, é evidente que, fosse nossa República algo mais que “em tese”, a relação entre nosso direito e o destino dos úteros fertilizados permaneceria externa. Sim, Severino é, e sempre foi, contrário ao que uma República, em tese e em prática, significa e pode significar. Não é de hoje, é de sempre. Aliás, Severino, seu partido, seus aliados, com quem sempre governou, até janeiro de 2003, bem que se diga. 

O circo que se vem armando contra Severino não distorce apenas sua posição, exigindo de um católico autêntico posições favoráveis ao aborto. Distorce, na exata proporção, o próprio debate público, com a pretensão, deliberada e orquestrada, de “denunciar” um ambiente de trevas, obscurantismo, arcaísmo e anti-republicanismo que estaria ameaçando o país. E é evidente que a triste figura de Severino contribui, com sua espetacular nitidez, para o show. É exatamente este mesmo show de cinismo e hipocrisia, que cerca a caricatura e o ridículo desse mandatário de mais de década, que busca obscurecer um verdadeiro debate republicano.

Um bom exemplo dessa operação ideológico-circense está no tratamento dado à medida do Ministério da Saúde sobre a dispensa do Boletim de Ocorrência em caso de estupro, para assistência da vítima pelo SUS. Pois bem, qual foi mesmo o tratamento dos próceres retóricos do republicanismo a essa medida, essencialmente republicana? Quem não lembra do falso debate promovido, no intuito de atacar, deliberada e anti-republicanamente, o “uso indiscriminado do instrumento para legalizar o aborto”, no país? Os mesmos que atacaram uma medida que visa a ampliar e amparar as mulheres vítimas da violência hoje cobram de Severino que apóie a medida. Trata-se de uma confusão, de um mal entendido qualquer?

Salvo pelo artigo da professora Flavia Piovesan, “Respeito e dignidade às mulheres brasileiras”, publicado na Carta Maior, quem foi mesmo, do editorialismo paulistano, que tomou uma posição favorável à medida que, sim, faz avançar os direitos da mulher violentada? Seria de pasmar, não fosse essa prática rigorosamente condizente com os ataques, tão obscurantistas como o é Severino, às posições deste. Então, a medida do Ministério da Saúde “favorece o aborto” e Severino é contra o aborto de mulheres estupradas! É incrível que, em ambos os casos, os mesmos veículos tenham a cara de pau de veicular essas posições como "suas" posições editoriais.

Cara de pau, hipocrisia? Somente isso? Não. É uma operação ideológica, que oscila e finge mudar para garantir a essência das relações anti-republicanas que ameaçam uma república pouco mais que “em tese”.

Severino é um católico de verdade, repito. Ele não freqüenta terreiros de macumba. Aliás, sempre foi assim. É certo que, apesar disso, é inadmissível que suas posições religiosas sejam postas e defendidas a despeito da posição que ocupa. Surpreendente e acidental, porém, seria ele agir com respeito à República. Seria, sem dúvida, um grato acidente. Tão grato como surreal.

A névoa do obscurantismo

Nada surreal nem surpreendente, é que nada tenha sido dito nem cobrado, aos que elegeram Severino presidente da Câmara. É extraordinariamente revelador que a névoa de um obscurantismo repentino, que se pretende construir, em nada vincule o PSDB a essa triste figura. Que nada seja dito sobre o papel do ex-presidente da República na triste madrugada do dia 15 de fevereiro que resultou na posição dessa triste figura, à frente do parlamento brasileiro.

O governo tem responsabilidade nisso. Isto é certo e, inclusive, em sua primeira entrevista coletiva o presidente Lula fez uma mea culpa (cifrada, mas fez), sobre o tema. E a maior responsabilidade do governo está não tanto no fracasso das articulações eleitorais para a presidência da Câmara, mas na natureza das escolhas políticas que conduzem à qualidade atual das relações com o parlamento. Exatamente essa qualidade, nada acidental, que persevera na essência do patrimonialismo, do autoritarismo, do anti-republicanismo, da desfaçatez, da hipocrisia, que subsistem.

Mas o governo não elegeu Severino. Não articulou sua candidatura, nada obscura, mas muito nítida, à presidência da Câmara. A operação de vincular e veicular tempos de trevas e obscurantismo, como acidentes, pretende, na verdade, perseverar e fazer permanecer a essência das relações e das escolhas que conduziram essa triste figura à atual posição que ocupa. E é justamente por isso que, neste contexto, editorialmente falacioso e politicamente anti-republicano, Severino não é um acidente.
 

* Katarina Peixoto é mestranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  

Fonte: Ag. Carta Maior, 03/05/2005


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