Título atrapalha professor doutor nas universidades particulares 
 

Instituições estão substituindo doutores por mestres, profissionais
 mais baratos, por conta de brecha na legislação


Um contra-senso toma conta do ensino superior privado brasileiro. Quanto mais preparado o professor, mais risco ele tem de ser preterido.

Há alguns meses, profissionais com formação de doutor vêm sendo demitidos das Universidades e faculdades particulares e amargam uma quase impossível recolocação que leve em conta o seu título.

O “Estado de SP” ouviu dezenas de professores dispensados na capital paulista e no interior, que relatam histórias semelhantes em diferentes instituições.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, estipula que as Universidades devem ter, pelo menos, um terço de seus professores com mestrado ou doutorado.

Essa exigência, que não especifica a quantidade em cada titulação, deve mudar com uma eventual aprovação da nova lei de Reforma Universitária.

Mas, por enquanto, a conjunção "ou" continua sendo um problema. Os doutores, que ganham mais, podem ser trocados por mestres se assim a instituição desejar.

"Ficou óbvio que passei a custar caro", diz I.D., demitido no fim do ano passado da Faculdade Anchieta quando estava perto de terminar o doutorado na USP.

"Quando entreguei o título de mestre na faculdade, já me viraram a cara." I.D. até agora não conseguiu um novo emprego. A faculdade informou que não está demitindo doutores. Todos os professores ouvidos pelo Estado preferiram não ter seu nomes publicados.

A situação de S.S. é parecida. Com título de doutora pela Pontifícia Universidade Católica de SP (PUC-SP), ela conta que ajudou a formular o projeto pedagógico de Psicologia na Universidade Mackenzie.

"Reorganizamos o curso, que era muito ruim, o MEC fez a avaliação e depois fui dispensada." O Mackenzie nega ter demitido qualquer funcionário em virtude da titulação e, segundo o reitor, Manassés Claudino Fonteles, novos doutores foram contratados neste ano.

O ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza, hoje consultor, diz que tem ouvido ultimamente histórias semelhantes à contada por S.S.

Nos tempos do Provão, que começou em 1996 e acabou em 2004, era liberada a cada ano a relação de mestres e doutores dos cursos participantes do exame.

Na primeira divulgação de seu substituto, o Enade, não ocorreu o mesmo. "Além disso, essa informação tinha de bater com a relação que deveria estar nas secretarias das instituições", diz. "Havia um controle social."

Já o controle oficial, do Ministério da Educação (MEC), ocorria e continua ocorrendo com periodicidade que varia de um a cinco anos. Instituições que já têm reconhecimento para seus cursos passam por novas verificações quando esse reconhecimento vence.

O prazo varia conforme o curso. O ex-ministro conta o que ouviu de donos de Universidades: "Se meu curso já tem o reconhecimento e o MEC vai demorar a vir de novo, para que vou manter o doutor se o mestre é mais barato?"

Segundo o Sindicato dos Professores de SP (Sinpro), não há piso salarial para a categoria do ensino superior, mas um professor doutor recebe em média R$ 45 por hora de aula, enquanto o mestre recebe R$ 40 e o especialista (apenas com especialização), R$ 34.

"As demissões estão ocorrendo, há substituição por pessoas que vão ganhar menos e não necessariamente são menos qualificadas", diz o presidente do Sinpro, Luiz Antonio Barbagli. Ou seja, há doutor sendo contratado para ganhar como mestre ou mesmo como especialista.

H.B. tem pós-doutorado pela USP e foi demitido há um ano do Mackenzie, onde ainda ganhava como mestre. "Já mandei entre 60 e 70 currículos e não tive nenhuma resposta", conta. 

Marta (nome fictício) aceitou ser contratada na Universidade Ibirapuera (Unib) para ganhar R$ 37 por hora, enquanto outros colegas doutores recebiam R$ 50 na mesma instituição.

Segundo conta a professora doutora do curso de Psicologia L.B., a Unib chamou seus funcionários em abril para apresentar as condições para continuarem ou não na instituição.

Ela diz que foi oferecida demissão voluntária ou um acordo em que o professor aceita ser demitido, mas fica quatro meses trabalhando sem carteira assinada e depois é recontratado por um salário inferior.

L.B. passaria a receber cerca de R$ 25 por hora de aula. "Querem transformar o professor em mão-de-obra barata", diz ela, que não aceitará a condição e deixará o emprego.

A Universidade informou que passa por dificuldades financeiras por causa da queda no número de alunos. Disse ainda que as propostas fazem parte apenas de uma pesquisa com os professores e nenhuma decisão ainda foi tomada.

No início do ano, chegaram e-mails à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC) que denunciavam a demissão de dezenas de doutores na Universidade Paulista (Unip).

"Ser doutor hoje já coloca o professor na fila da demissão em algumas instituições", diz Paulo, que tem doutorado pela USP e foi demitido da Unip de Ribeirão Preto. Procurada, a universidade não se pronunciou.

Crescimento

O Brasil tem hoje 254.153 professores universitários, segundo o MEC. Mais de 54 mil são doutores e 89 mil, mestres.

Os especialistas são 74 mil e o restante tem apenas a graduação. Em 1994, os mestres e doutores representavam 25% dos professores; hoje passam dos 50%.

O número de professores titulados acompanhou o salto do mercado do ensino superior privado na gestão Paulo Renato.

Em dez anos, cresceu em 60% o número de instituições. Atraídos por altos salários, doutores migraram das Universidades públicas para as privadas.

"Hoje não é mais necessário pagar R$ 12 mil por um doutor", diz o presidente do Sindicato dos Mantenedores do Ensino Superior do Estado de SP (Semesp), Hermes Ferreira Figueiredo.

Para ele, após a "caça aos doutores" no início dos anos 1990, o mercado "está se acomodando".

Ele nega que haja demissão em massa de doutores, pois as instituições convivem com a expectativa da aprovação da Reforma Universitária.

O projeto do governo prevê que 50% dos professores das Universidades sejam mestres ou doutores, mas a metade obrigatoriamente deverá ser de doutores.

MEC poderá fiscalizar instituições denunciadas

O MEC fará visitas-surpresa a instituições eventualmente denunciadas por demissão em massa de doutores ou qualquer outro problema.

É o que garante o secretário de Educação Superior do MEC, Nelson Maculan, que se disse "triste" ao constatar que as Universidades estão baixando sua qualidade ao dispensar os professores mais preparados.

Segundo ele, comissões seriam formadas em caráter de urgência para verificar cursos denunciados ou mesmo sorteados pelo MEC para receber a visita.

Maculan acredita que a situação atual não vá frear o crescimento no número de doutores formados por ano. Em 2003, segundo o último Censo da Educação Superior, 8 mil novos doutores foram titulados.

"O doutorado não tem apenas demanda acadêmica", concorda o diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC), Renato Janine Ribeiro.

Ele também acredita que o Brasil tem capacidade para aumentar muito sua quantidade de doutores, que hoje está em cerca de 50 mil. 

Ribeiro enfatiza a importância do professor titulado para a instituição. "Obviamente o ensino será melhor tendo professores intelectualmente mais fortes."

São eles também os responsáveis pela chamada produção do conhecimento, por meio das pesquisas e da pós-graduação.

"Assim, eles sabem o que está vivo na ciência e mantêm os cursos atualizados para os alunos", explica.

"A sociedade tende a olhar apenas para a graduação. Mas é como um iceberg, a parte que todo mundo vê da universidade não é o todo", completa.

Greves

Além das demissões de doutores, algumas instituições de ensino da capital enfrentaram greves de professores por atrasos de salário nos últimos meses. A Universidade Castelo Branco (Unicastelo), em SP, ficou parada por três semanas em maio.

A instituição alegava dificuldades financeiras por causa da alta inadimplência dos alunos. Uma nova administração está agora assumindo a instituição e o cenário começou a se regularizar.

Situação semelhante ocorreu na Universidade Santanna (UniSant'Anna), também na capital, que enfrentou uma greve de professores neste ano e, recentemente, contratou uma auditoria para uma reestruturação da gestão.

Segundo o Semesp, o índice de inadimplência nas instituições paulistas varia de 12% a 15%.

 

Fonte: O Estado de S. Paulo, Renata Cafardo, 19/06/2005.


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