Trocar dívida por educação é boa idéia

 

(...) A idéia é simples, troca-se um pedaço da dívida por um investimento monitorado em educação, ciência ou ambiente. A dívida externa pública brasileira está em US$ 114 bilhões. Se tudo der certo, pode-se tentar converter umas poucas centenas de milhões, não mais que isso. Esse estratagema é defendido pela Unesco e já foi usado em diversos países. Recentemente, a Argentina ganhou um refresco de US$ 60 milhões da Espanha. A engenharia financeira da transação requer paciência e tenacidade.

Grosseiramente, o estratagema funcionaria assim: um credor tem um papel de US$ 100. Passa-o a uma instituição por US$ 70 e ela obtém do governo devedor o compromisso de investir o equivalente a US$ 100 em projetos específicos. A quitação que ia para fora do país transforma-se inteira ou parcialmente num investimento interno.

Como diria Garrincha: combinaram com os russos? Essa é a parte difícil. Um investidor só será atraído para esse tipo de transação se perceber que um país incapaz de investir 5% do seu PIB em educação acaba não pagando o que deve. Em geral, o ciclo de endividamento/renegociação do andar de baixo mundial é de 25 ou 30 anos. (Na República, nenhum papel brasileiro com 30 anos de maturação chegou virgem ao vencimento. Houve moratória e/ou renegociação em 1982, 1964, 1937, 1931 e 1898.)

A idéia segundo a qual é preciso investir em educação para garantir o pagamento das dívidas não é da Unesco nem dos caloteiros. é da banca, em consórcio com o FMI.

Na sua primeira viagem à áfrica, o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, caiu na Costa do Marfim e no palácio versalhesco do presidente que se orgulhava de ter importado um cozinheiro francês. O banco lhe emprestara US$ 100 milhões para projetos educacionais e Wolfensohn perguntou aos seus sábios o que se fizera com o dinheiro. "é uma operação de ajuste", disseram-lhe. "Nós não podemos perdoar a dívida, então a gente faz assim." O esquema tinha até nome: "empréstimo defensivo". Era um cala-boca, destinado a evitar uma renegociação. O vice-presidente do banco para a áfrica, Kim Jaycox, explicou melhor: "Se eu falar em alívio da dívida, o Ernie Stern me capa". (Ernie Stern era o segundo homem do Fundo Monetário Internacional.) Wolfensohn capou Jaycox, mas não se pode dizer que o Banco Mundial fechou de vez sua carteira de "empréstimos defensivos".

A ekipekonômika tem horror à idéia de discutir a dívida, a não ser para pagá-la com o rigor de banqueiro suíço e os juros de agiota marciano. Tinham desprezo pela redefinição junto ao FMI do conceito de investimento. Agora sustenta que a maracutaia concebida para proteger Marta Suplicy e Cesar Maia ampara-se na noção de que investimento em iluminação não pode ser considerado endividamento.

A proposta endossada por Tarso Genro não precisa ser agressiva nem megalomaníaca. Será eficaz na medida em que for serena, moldável aos interesses de todas as partes. é possível que o governo brasileiro, pagando juros de 19,25%, com um presidente que comprou um avião de emir do Golfo já não tenha muita autoridade para forçar uma negociação desse tipo. Tudo bem. O simples fato de o Brasil entrar na discussão por esse lado já mostra que, pelo menos nela, não fez a opção preferencial pelos banqueiros.

Fonte: Folha de S. Paulo, 23/03/2005


Hora de trocar dívida por educação
Jorge Werthein* 

 

É urgente rever a questão do pagamento da dívida externa e dos investimentos em educação nos países em desenvolvimento,
pois é visível a necessidade do conhecimento para
o desenvolvimento sustentável

 

A decisão da Espanha de perdoar 60 milhões de euros da dívida externa argentina para que esse montante seja investido em educação, anunciada em janeiro, é um exemplo de cooperação e solidariedade internacional que deveria ser seguido por países credores e devedores de todo o mundo.

Trata-se de uma iniciativa que põe a questão da redução da dívida externa dos países em desenvolvimento em uma estratégia mais ampla voltada para a promoção da educação e o combate à pobreza em todo o planeta.

Traz à tona a esperança de que os países latino-americanos consigam sucesso na articulação de uma política global de apoio às nações endividadas, que os ajude a mudar sua realidade educacional, por meio de investimentos prioritários em educação básica, e a promover seu desenvolvimento social.

A ofensiva política em favor da conversão da dívida em investimentos em educação, iniciada em 2003, em fóruns internacionais como a Conferência Geral da Unesco e o encontro ministerial da OEA, e em reuniões no âmbito do Mercosul — tendo à frente das discussões o ministro da Educação do Brasil, Tarso Genro, seu antecessor, Cristovam Buarque, e o ministro da Educação, Ciência e Tecnologia argentino, Daniel Filmus — ganhou força com a decisão do governo espanhol.

É preciso agora que os ministros de Educação e Finanças de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile, que estão construindo uma proposta conjunta, envidem todos os esforços políticos por uma profunda negociação internacional com países credores e instituições financeiras multilaterais tais como o Banco Mundial, o BID e o FMI.

Transformar a idéia da conversão da dívida em uma ação prática que beneficie os parceiros do Mercosul requer a firme decisão de cada um dos países de tratar o assunto como uma prioridade nacional e como uma política global de elevado alcance social.

Negociação semelhante já foi feita com sucesso, no passado recente, por países como Costa Rica, Bolívia, Equador, Guatemala e México, que conseguiram a conversão de parte de suas dívidas em investimentos na conservação ambiental.

Os países em desenvolvimento enfrentam uma situação muito difícil no que diz respeito ao endividamento interno e externo, o que, aliado à necessidade de fortes ajustes fiscais, vem colocando-os em um estado de escassez de recursos públicos para investimentos em políticas sociais.

De acordo com o World Development Indicators 2004, do Banco Mundial, a América Latina tinha, em 2002, uma dívida externa de US$ 728 bilhões, um aumento de cerca de 63% se comparado com 1990.

Grande parte dos países da região, como Argentina, Brasil, Uruguai, Equador e Peru, são classificados como países severamente endividados. No caso de Argentina e Brasil, as dívidas correspondem, respectivamente, a 393% e 342% do total de suas exportações.

O reconhecimento da insustentabilidade da dívida dos países em desenvolvimento já foi feito pelas instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), ao lançarem uma iniciativa para a redução do endividamento dos países pobres (HIPC).

A necessidade de investimentos em educação e o seu comprovado retorno social e econômico também já foram reconhecidos pela comunidade internacional e pelas instituições financiadoras.

No Fórum Mundial de Educação (Dacar), em 2000, os Estados participantes afirmaram que ‘não faltarão recursos para a educação’. O Banco Mundial criou o ‘Education for All: fast-track initiative’ para promover a universalização da educação básica por meio do fortalecimento de políticas nacionais e incremento do financiamento externo.

Entretanto, o que se viu nos últimos anos foi uma queda relevante no total da ajuda oficial ao desenvolvimento voltada à educação. Os anos de 2000 e 2001 registraram o menor volume de ajuda bilateral à educação (abaixo de US$ 8 bilhões por ano).

E isso ocorreu após a aprovação de documentos centrais à cooperação internacional no novo século, como a Declaração do Milênio, estabelecendo os Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e o Consenso de Monterrey.

Há, portanto, um claro distanciamento entre compromissos assumidos e ações práticas para possibilitar seu alcance.

É urgente que se reveja a questão do pagamento da dívida externa e dos investimentos em educação nos países em desenvolvimento, pois a cada dia torna-se mais visível a necessidade de geração de conhecimento para se alcançar o desenvolvimento sustentável.

O fator diferencial dos países que mais avançaram nas últimas décadas foi justamente a atenção dada à educação, que não pode ser mais considerada somente importante mas sim prioritária.

A construção de um mundo mais justo e pacífico passa necessariamente pela igualdade de oportunidades de desenvolvimento entre nações ricas e países menos desenvolvidos. 

* Jorge Werthein, 61, argentino, é Ph.D em Educação e Desenvolvimento pela Universidade de Stanford (EUA). Foi diretor do escritório da Unesco em Nova York e Washington entre 1994 e 1996. É o representante da Unesco no Brasil desde julho de 1996.

Fonte: O Globo, 24/02/2005


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