Universidade pública e gratuita: "conto
do vigário"?

Donaldo Bello de Souza*


U
m dia desses, escutei de um amigo economista imaginoso que, caso o homem não tivesse sido expulso do paraíso, as preocupações de ordem econômica jamais existiriam. De certo, muitas coisas não existiriam, em especial o trabalho que, também do ponto de vista bíblico, principia sob o estigma do castigo, neste caso, divino. Assim, se o éden, por definição, se constitui em um lugar onde reina a efetiva felicidade, isto implica considerar que nada faltou a Adão e Eva, no sentido de terem sua existência assegurada, sobretudo, pela abundância de recursos necessários à vida e à plena felicidade. Assim, a finitude, a escassez, a privação se apresentam absolutamente espúrios à noção de paraíso, sendo atinentes, lamentavelmente, ao reino da vida terrena. A esta, da qual compartilhamos.

Hoje, mais do que em outros tempos, impera o reconhecimento de que os bens naturais que o homem dispõe (animais, vegetais e minerais) são findáveis e que, por este motivo, devem ser explorados segundo uma racionalidade que garanta, entre outros aspectos, sua renovação permanente, além de considerar, por exemplo, a manutenção de seu próprio equilíbrio. Na esfera dos recursos pecuniários, sobretudo no âmbito do Estado, a noção de escassez se torna ainda mais flagrante e tangível. As sociedades, até mesmo aquelas que gozam de maior riqueza (como afirmado por Eduardo Galeano, por terem se especializado na exploração das mais pobres), freqüentemente se deparam com a finitude de recursos que sirvam ao financiamento do conjunto de suas necessidades coletivas. Em certa medida, o reconhecimento destas limitações acaba induzindo o caráter político das decisões do Estado em torno do atendimento ou não de determinadas demandas sociais. Se os recursos são finitos, são igualmente limitadas as necessidades a serem satisfeitas, ou seja, algumas delas serão total ou parcialmente atendidas, enquanto que outras, possivelmente, não.

Neste contexto, os gestores públicos deslocam recursos de uma atividade para outra, assumindo o ônus do descontentamento de alguns, ou de muitos grupos ou setores da sociedade, em virtude do fato de terem o atendimento de suas necessidades subtraídas, isto em prol do aprazimento de outros. É igualmente comum o Estado criar novos impostos, tarifas e taxas, ou seja, constituir novas fontes de recursos, ou de ampliação das já existentes, de modo a viabilizar o financiamento de determinados serviços públicos. Contudo, o que causa estranheza, e não por acaso acaba se transformando em matéria de discussão constitucional e ética, é o fato de o Estado vir a "taxar" a renda de um cidadão que, algum dia, se beneficiou de um serviço público em especial, sem saber que, num futuro não muito distante, seria chamado a devolver aos cofres, por exemplo, da União, parte ou a totalidade do que fora com ele gasto, e, sabe-se lá, ainda acrescido de juros e correção monetária. E tudo isto sob o pretexto de que tal ato implica viabilizar a expansão de determinado serviço "público(?)" a outros cidadãos.

Por hipótese, pensemos o quanto seria bizarro o dia em que viéssemos a ser chamados pelo Estado para pagar por todas as vacinas que o posto de saúde nos aplicou, por exemplo, ao longo da nossa infância, isto considerando que, por época das campanhas de vacinação, fora dito aos nossos pais que tal serviço se constituía em obrigação do Estado para com o cidadão e que, por este motivo, nada seria cobrado. Vislumbre, ainda, o quão escandaloso seria ter que indenizar o Estado por todas as vezes que, também no passado, a polícia lhe prestou algum tipo de serviço: registrou uma ocorrência de uma colisão de trânsito, evitou que lhe agredissem, recuperou o carro que fora roubado, atestou o extravio de documentos, reprimiu o tráfico de drogas no bairro etc. Para encurtar, imagine que em determinado momento de sua vida o Governo Federal lhe dissesse que, pelo fato de ter estudado em uma universidade pública, seu salário viria agora a ser taxado, de modo a viabilizar a expansão deste serviço social, sem que, no momento de seu ingresso no ensino superior público, tivessem lhe alertado para tal possibilidade.

Bem, pelo menos a respeito desta última situação, não há a necessidade de se depreender maiores energias imaginativas, já que se trata, em essência, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 573, na qual o atual ministro da Educação, professor Cristovam Buarque, busca apoiar-se para a edificação de uma nova forma de captação de recursos para o financiamento da ampliação do ensino superior "público(?)" no Brasil. De autoria do ex-deputado federal Padre Roque (PT-PR), a proposta em questão, recém "exumada" pelo senhor ministro, atingiria aqueles ex-alunos que hoje concebem salários anuais superiores a R$ 30 mil, cuja contribuição se situaria na faixa de 2% a 3% sobre o Imposto de Renda.

Tal quadro, de um lado, se presta à constatação de que, em meio à escassez financeira, o poder público é levado a criar novas formas de geração de recursos para a promoção de serviços que a Constituição Federal (CF) o obriga a prestar à sociedade e, de outro, serve como exemplo típico de como o Estado, gradativamente, vem se esquivando destas mesmas obrigações, inclusive legitimando sua retração pela via de alterações a serem impressas na própria Carta Magna, nos termos da transformação daquilo que ora se apresenta como ilegal em "legal". Por exemplo, que nova redação será dada ao Artigo n° 206 da CF, quando esta versa que, no âmbito dos estabelecimentos oficiais, o ensino público será "gratuito"? Ou, ainda, quando afirma, no § 1.º do Artigo n° 211, que "A União organizará e financiará o sistema federal de ensino e o dos territórios..."?

No que remete à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n° 9.394/96 –, que entendimentos deveremos realizar sobre, por exemplo, a "gratuidade" do ensino público em estabelecimentos oficiais, propugnada como um dos princípios da educação nacional (Artigo n° 3)? Parece que noções como "gratuidade" e "público" estão em vias de serem ressignificadas, isto na melhor das hipóteses, pois, sob uma visão pessimista, poderão estar condenadas ao desaparecimento, destino selado pelos dois mandatos liberalizantes do governo Fernando Henrique Cardoso e, agora, em processo de endosso pelo governo Lula. Quem sabe, o sentido de "gratuidade", associado à dimensão do "público", virá a significar, em sua polissemia político-ideológica, aquilo que, embora por ora não implique ônus, amanhã poderá implicar?

Resgatando a tese de que a finitude dos recursos condicionam o caráter político das decisões do Estado em relação à priorização da satisfação das necessidades sociais, cabe finalizar destacando que estas mesmas decisões, a um só tempo, refletem os compromissos políticos assumidos pelo Estado em relação a determinados segmentos da sociedade, ou melhor, no que concerne a determinados interesses de classe.

Em nome de que princípio deve-se onerar o proletário de nível superior (em processo crescente de pauperização), poupando-se cerca de outros 75 mil cidadãos que expõem patrimônio superior a US$ 1 milhão (cerca de R$ 3 milhões), excluído da contabilização de bens imóveis? Ao contrário daqueles, estes se constituem nos brasileiros que representam cerca de 1% dos milionários do planeta, conforme dados divulgados pelo "Relatório Mundial da Riqueza", assinado pela corretora americana Merrill Lynch e pela consultoria Ernest & Young, divulgado em reportagem do dia 12 do corrente no Jornal do Brasil.

*Doutor em Educação, professor adjunto e coordenador do Núcleo de Projetos Especiais (NUPE) da Faculdade de Educação da Uerj.

 

Fonte: Folha Dirigida, 17/6/2003, RJ.



 

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