O feio vício da inveja
Lya Luft*

 

"Se só vulgarização e baixo nível vendem uma obra, o Espírito Santo teria descido de nível ao inspirar a Bíblia, o livro que mais vende
no mundo. Somos realmente tão tolos?"


Antigamente se dizia que a masturbação era o feio vício. Eu digo: a inveja é um vício feiíssimo, secundado pelo ressentimento. Juntos preparam o caminho do inferno. Não aquele religioso, com diabos espetando o traseiro da gente, mas o do ridículo e da falta de respeito por si mesmo, para começar.

Aceitamos muito mal o sucesso alheio, a alegria alheia, o amor alheio. Quando não gostamos de nossa própria vida, odiamos pensar que alguém esteja contente com a sua. Supervalorizamos o momento bom do outro, não para o curtirmos com ele, mas como se isso o tornasse maior ou melhor que nós, e o tratamos como réu: culpado de não fracassar, não ser vaiado, não ficar sozinho nem mofar na prateleira. A mim em geral me diverte um pouco observar essas coisas, mas às vezes me espanta.

Lygia Fagundes Telles, a quem aqui homenageio, que me incentivou a fazer ficção nos idos da década de 70, já então reclamava do "olho turvo da inveja vertendo sua lágrima verde de bílis". Pois outro dia tive de escutar alguém amargo e chato, além do mais bastante inadequado, condenando os chamados best-sellers e seus autores, na minha cara. Por acaso um entre meus tantos livros de momento vende bem, e não vou me desculpar por isso. Ao mesmo tempo tal pessoa injuriava os leitores que compram coisa tão ruim...

O que é um best-seller? Entre nós era, até pouco tempo atrás, o livro estrangeiro que vendia milhões, enquanto o autor brasileiro chupava o dedo. Hoje se rotula assim também o livro de autor brasileiro que não mofa nas prateleiras.

Quero dizer que cansei. Nem por desinformação, burrice ou má vontade me perguntem se, depois de ser tachada de escritora "complicada", hermética e obscura por tantos anos, passei – para alguns menos elegantes – a "facilitar para me nivelar aos leitores". Se só vulgarização e baixo nível vendem uma obra, o Espírito Santo – para quem nele acredita – teria descido de nível ao inspirar a Bíblia, o livro que mais vende no mundo. Somos realmente tão tolos?

Sempre há os que detestam autores cujo trabalho é mais amplamente reconhecido, seja por qualidade, sorte ou essa marca de imponderável que faz com que um livro "pegue" ou não. Sempre há os que acham defeito no empresário bem-sucedido ("deve ser corrupto"), no casal feliz ("mas com certeza ele a passa pra trás"), na mulher bonita ("Ah, mas eu soube que ela..."). A lista do ressentimento e da calúnia é longa. Sinto lhes dizer, mas coisas boas acontecem, pessoas às vezes se amam de verdade, felicidade existe, famílias podem ser unidas, sucesso ocorre e, acreditem, não é caminho para o céu ou porta para qualquer academia – nenhuma, aliás, me interessa.

De preferência, nem dêem tanta opinião se não forem críticos, resenhistas, professores – e, mesmo aí, aceitem seus limites. "Seu primeiro romance foi o melhor de todos", me diz alguém (depois dele escrevi mais uns nove...). "Você devia escrever só romances, são muito melhores que seus ensaios e poemas", opina outro, e alguém logo a seguir comenta: "Seus ensaios são mais interessantes, esqueça a ficção". Um livro meu de poemas que acaba de sair comete o pecado de aparecer em listas de mais vendidos: já me divirto imaginando a reação das pessoas que vivem reclamando que "brasileiro não lê", mas criticam aqueles cujos livros vendem bem e aqueles que os compram.

Ninguém mais ou menos sensato ou vagamente bem-educado perguntaria à francesa Marguerite Yourcenar, se viva fosse e de repente vendesse bem um livro seu (Memórias de Adriano esteve nas listas...): "Madame Yourcenar, a senhora agora se rebaixou para agradar aos leitores comuns, os ignorantes que compram best-sellers?". Então, não perguntem o mesmo a nenhum escritor brasileiro de sucesso. Somos igualmente dignos de respeito. Mas há quem não consiga deixar o feio vício. Ai de nós.


* Lya Luft é escritora.

Fonte: Rev. Veja, ed. nº 1907, 01/06/2005.


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