‘Os quatorze anos de Chávez à frente da Venezuela trouxeram mais avanços do que problemas’   
     

Por Valéria Nader e Gabriel Brito*

Hugo Chávez tem pela frente mais seis anos na presidência da Venezuela, e seu projeto bolivariano já alcançou duas décadas na direção política do país. Com um dos processos eleitorais mais polarizados do planeta, a Venezuela segue sendo analisada por prismas radicalmente opostos, o que obscurece o panorama para aqueles que não vivem a realidade local.

O jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero, Gilberto Maringoni, conhecedor da realidade venezuelana e também autor do livro A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez, conversou com o Correio sobre este controverso país e seu presidente. Para ele, a vitória de Chávez ilumina a continuidade de um processo iniciado justamente em seu triunfo de 1998, no auge do neoliberalismo na América Latina. Apesar das justas críticas ao burocratismo e centralismo em torno do mandatário, Maringoni acredita que uma derrota seria desastrosa para o processo político da região, num momento em que a Venezuela acaba de entrar no Mercosul, abrindo ótimos mercados para seus parceiros e também ganhando uma “inédita” chance de avançar rumo a uma maior industrialização.

Quanto ao centralismo, o entrevistado lembra que o movimento social foi muito massacrado no país no período anterior, das democracias de fachada do Pacto de Punto Fijo (1958), tendo sido, de fato, reestruturado de cima pra baixo, tal como o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela). Além disso, destaca que a falta de desenvolvimento industrial e agrícola também acarreta num outro perfil de classe trabalhadora, dificultando a organização popular e sindical num país onde os trabalhadores que orbitam o ramo petrolífero são cerca de 0,3% dos 30 milhões de venezuelanos.

No entanto, Maringoni acredita na continuidade do processo e destaca a figura de Nicolas Maduro, ex-chanceler e com forte atuação internacional, como uma nova liderança a despontar na base chavista. E ironiza o histrionismo midiático, interno e externo, em torno da figura do reeleito, ao afirmar que “a população venezuelana não lê esses jornais, não concorda com eles e continua votando no Chávez”.

A entrevista completa com Gilberto Maringoni pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você avalia a mais recente eleição presidencial realizada na Venezuela, no último dia 7 de outubro, que terminou com vitória de Hugo Chávez sobre Henrique Capriles por 55% x 45% de votos, outorgando ao reeleito mais seis anos no cargo?

Gilberto Maringoni: Embora o resultado fosse esperado, vide as pesquisas que davam essa vantagem, não deixa de ser surpreendente que um chefe de governo, após 14 anos no poder, se reeleja com uma votação percentual semelhante à primeira eleição. Um governo submetido a todo tipo de pressão, desgaste, turbulência.

Um governo nacional é uma entidade muito complexa, não depende somente do chefe de Estado, de um líder, uma figura, mas de toda a ação das políticas públicas, cotidianamente, na segurança pública, política de energia, enfim, naquilo que se traduz no conforto, ou não, da vida do cidadão. Acho incrível que tenha repetido aquele percentual de 1998.

Em segundo lugar, sua vitória adquire um caráter não só simbólico, mas importante, porque a primeira vitória do Chávez foi vista como exceção na América Latina no final daquele período neoliberal dos anos 90. E logo depois tivemos uma série de eleições na região que colocou nos governos líderes que eram críticos, em maior ou menor grau, aos caminhos feitos pelos governos neoliberais. De modo que o Chávez inaugurou uma fase na América Latina, o que se confirma não só por ele, mas também com a eleição ou reeleição de Mujica, Dilma, Kirchner, Evo, Correa... Embora não tenham muita identidade entre si, contrapuseram-se ao neoliberalismo.

Correio da Cidadania: Por outro lado, mesmo com a vitória de Chávez, tivemos um notório crescimento da direita, agora mais organizada para o jogo democrático e mais divorciada de tentativas golpistas, ainda que não completamente. A que se deve essa recuperação, ao menos nas urnas, da direita do país?

Gilberto Maringoni: Essa mudança da direita já acontece há alguns anos, não é de hoje. Ela começou a se organizar em 2007, quando o Chávez perdeu o plebiscito constitucional. Mesmo na eleição que o Chávez ganhou do Manuel Rosales, a oposição já tinha se organizado – e com menos condições que hoje. Isso mostra que foi ali que ela começou a usar tal tática. Porque, entre 2002 e 2005, a tática era desconhecer o processo institucional inaugurado pela eleição do Chávez, o que queria dizer não reconhecer a reconstitucionalização do país a partir de 2000.

Assim, foram para o golpe, tentaram tirar o governo à força, fizeram locautes e contaram com campanhas difamatórias da mídia interna, controlada pela oposição, além de enorme parte da mídia comercial mundial. Tentaram desconhecer resultados eleitorais e, não raro, denunciar o processo em organismos internacionais, sem efeito. Agora, aderem ao jogo democrático, se organizam e isso é ótimo para a democracia, coloca o debate de ideias e projetos na ordem do dia e fecha cada vez mais o espaço à sua tendência de golpismo e também a suas alas mais afeitas a tal conduta.

O governo venezuelano recolocar a direita na disputa democrática não é qualquer coisa. Temos aí o exemplo de Paraguai e Honduras, em que a direita partiu para o golpe e levou, também vencendo internacionalmente nesses casos e conseguindo de alguma forma se legitimar.

Correio da Cidadania: Deparar-se com críticas de campos mais progressistas ao projeto chavista não é algo que ronde muito a imprensa à qual temos mais acesso, ventríloqua das críticas à direita ao governo venezuelano. No entanto, com 14 anos à frente do poder, começam a ser denunciadas, na mídia mais à esquerda, algumas fissuras e desgastes no projeto e governo chavistas. O que pensa das críticas advindas desses setores, que acusam, por exemplo, Chávez de barrar a atuação sindical e mais autônoma dos trabalhadores, abusando do centralismo, e impedindo a formação de novas lideranças?

Gilberto Maringoni: Sim, muitas fragilidades vêm à tona. Não estou lá todo dia pra falar melhor, mas o que sentia é que a Venezuela viveu um processo nos anos 60, 70 e 80 de repressão ao movimento social, que não se deu de forma tão aberta, pois a Venezuela não teve ditadura, oficialmente. Atravessou o período com governos eleitos democraticamente. Mas era uma fachada. Como sabido, desde o Pacto de Punto Fijo (1958) houve um acordo de dois partidos majoritários que eliminava o dissenso, eliminava a esquerda e fazia repressão aberta ao movimento social que se contrapunha ao jogo de carta marcada, cooptando a parte mais dócil desse movimento social.

Acontece que a Venezuela chegou à eleição do Chávez com o movimento social totalmente desarticulado. Esse movimento começou a se reorganizar a partir de sua vitória, e de cima pra baixo mesmo. A formação do PSUV (Partido Socialista Unido Venezuelano) e de uma nova central sindical se deram, do mesmo modo, muito de cima pra baixo. Fica difícil dizer se há todo esse controle, mas se trata de uma situação de debilidade do movimento sindical também. É muito difícil organizar uma base social consistente com o grau de ataques feitos aos movimentos no período anterior. Mas nem acho que seja este o problema mais grave. O problema sério é a falta de alternância e de liderança, o que não depende do Chávez querer ou não. Ele até tenta. Agora quem vai para a vice-presidência é o Nicolas Maduro, que foi uma revelação como ministro das Relações Exteriores e que talvez seja, na cúpula do chavismo, o quadro político mais preparado para a sucessão. Existe uma tentativa.

Essa é uma situação comum em países que passam por tensões sociais muito agudas, como em Cuba (apesar de a Venezuela não ter passado por revolução), onde a figura do Fidel Castro, mesmo fora do poder, tem uma preponderância enorme... A população não vê o Fidel apenas como um líder. Ele é visto como um herói que libertou o país de uma ditadura se confrontando com o domínio dos EUA, de forma mítica. Na Venezuela não é muito diferente. O golpe que o Chávez tentou em 1992 se deu numa situação em que tinha acabado de acontecer a repressão de 1989, o Caracazo, com 1200 pessoas mortas pelo aparato de segurança. Houve uma rebelião popular contra o aprofundamento da crise econômica e um governo corrupto, do Carlos Andrés Perez, que estava desgastado. E aí o Chávez tentou um golpe de Estado. Não como loucura irresponsável, mas como saída heroica ao país. O Chávez adquiriu a aura de herói, de quem enfrentou o golpe em 2002, venceu todos esses enfrentamentos e agora venceu o câncer. Ele tem características míticas que não permitem que se coloque qualquer um no seu lugar, não é fácil.

Há que se considerar ainda o fato de a Venezuela ser um país muito menos complexo que o Brasil, por exemplo. Não tem indústria, só a petroleira. O fato de não ter indústria não significa apenas que o país não possa produzir bens de consumo mais sofisticados. As relações entre as classes sociais são muito diferentes. Não existe uma burguesia venezuelana como no Brasil, com uma classe dominante industrial, produtiva. As entidades empresariais de lá, e seus líderes, seriam considerados, com muito boa vontade, médios empresários no Brasil. Porque o grosso dos ricos venezuelanos vive, ou vivia, em volta da riqueza e indústria estatais do petróleo. Podemos pensar em algumas redes empresariais, como telecomunicações, mais fortes, mas são exceção. O Gustavo Cisneros (empresário com fortuna avaliada em 6 bilhões de dólares e próximo ao ex-presidente Carlos Andrés Perez) sequer vive na Venezuela, a maior parte de seus investimentos está nos EUA, espalhada pela América Latina, Ásia, Europa...

Isso também faz com que não se tenha uma classe operária numerosa. De modo que a esquerda venezuelana tinha uma grande debilidade, não porque seus militantes fossem menos heroicos ou aguerridos, mas porque a base social deles era muito pequena em relação ao conjunto da população. Para se ter ideia, o país tem hoje 30 milhões de habitantes. Na indústria petroleira, trabalham 110 mil pessoas, direta e indiretamente, cerca de 0,3% da população. Quais são as outras atividades que existem por lá? Não tem indústria automobilística, de informática, não tem uma agricultura potente... Estão todos no setor de comércio e serviços. E nesses setores, vive-se de importações.

Esta é uma marca das economias petroleiras, não só da Venezuela. Esses países têm petróleo, que brota do solo, é exportado, muitas vezes sem muito refino. Apesar de a Venezuela já fazer refino, recebe uma enxurrada de dólares, o que leva à valorização da moeda nacional. A partir daí, começa-se a importar tudo. É muito mais barato na Venezuela importar carro, computador, qualquer eletrônico, do que produzir internamente. Tem dinheiro sobrando. O Celso Furtado, em 1957, foi quem percebeu esse fenômeno, ao escrever um livro, relançado há poucos anos, chamado Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de capital. Ele queria dizer que, geralmente, o subdesenvolvimento é associado a uma carência de capital proveniente de países desenvolvidos. A Venezuela tem muito capital e não se desenvolve. O dinheiro entra, mas, como não há atividade produtiva consistente, não tem onde ser investido de forma permanente. Assim, os ricos mandam esse dinheiro pra fora, ele não fica no país. Por isso o Chávez estabeleceu como política econômica desses 14 anos a apropriação da riqueza petroleira, com a formação de um fundo de desenvolvimento e sustento. Parte da riqueza até pode ficar fora do país pra não valorizar demais a moeda, e essa riqueza pode ser usada pra desenvolver setores produtivos da economia do país.

Consegue? Não. Consegue só em algumas áreas. Eliminando o analfabetismo, alavancando programas sociais importantíssimos. A vida melhorou na Venezuela, o salário mínimo é o melhor da América Latina, corresponde a 1400 reais, mas não consegue dar aquela virada pra fazer o país economicamente autônomo. Ao mesmo tempo em que entra esse dinheiro, pra instalar uma empresa, além do problema de câmbio e da propensão a importar, não se tem um mercado interno forte, que permita, por exemplo, a instalação de uma indústria automobilística de peso.

Correio da Cidadania: O que pensa ainda das críticas do Partido Comunista local, que denuncia uma crescente burocratização e corrupção do aparelho estatal, e a tolerância com a formação de uma nova elite econômica, apelidada por eles de “boliburguesia”?

Gilberto Maringoni: São realidades de qualquer governo. Precisa ver em detalhes. Existe uma burocracia estatal, onde quem está quer ficar. A burocracia em si não é ruim, o Estado precisa de uma rotina de iniciativas que tem esse nome, a própria palavra vem de birô, de escritório. O burocratismo se dá quando a norma, a lógica, a rotina administrativa, suplantam a necessidade de suprir demandas.

Não estou acompanhando em detalhes nesses tempos, mas não duvido, é possível. A formação de uma nova elite não surpreende, o país segue capitalista, ainda não socialista. No capitalismo, temos a característica da concentração de renda, com setores detentores de mais renda que outros. Mesmo assim, essa concentração caiu. É possível que parte dos empresários que presta serviço ao Estado tenha se beneficiado disso. Mas, pelo que vejo, não é uma norma de governo, apenas acontece.

Não estou lá pra ver, na sintonia fina, e ler a imprensa venezuelana não basta. De lado a lado, não é muito fácil se informar bem, pois a tomada de posições é muito forte, com a grande polarização que há e muita troca de acusação. A formação de novas elites econômicas é algo a ser combatido, mas não é estranho ao processo.

Correio da Cidadania: O “Estado-comunal”, que consistiria na formação de comunas que teriam ordenamento jurídico e autonomia política próprios em relação aos estados e municípios, é visto por alguns como um aprofundamento do poder popular, tal como no caso das ‘misiones’; e, por outros, como uma reincidência no excesso de centralismo presidencial. Como encara esta experiência?

Gilberto Maringoni: Essa proposta comunal já existe há uns quatro anos. O problema da Venezuela é aumentar a participação popular, incentivar o engajamento social, com o poder da sociedade exercido de baixo. Isso porque temos problemas com a institucionalidade burguesa – chamemos pelo nome. Problemas no Judiciário, câmaras, prefeituras, assembleias legislativas etc. Não sei como isso vem sendo encaminhado ultimamente, mas, se é pra democratizar a institucionalidade burguesa, é ótimo. Porque nela nós temos problemas, o poder constituído funciona autonomamente em relação às demandas da população. A população vota de dois em dois anos e depois os poderes funcionam sozinhos. Ter um judiciário com conselhos cidadãos, assim como assembleias e prefeituras com poderes emanando de baixo, é muito positivo. Não é fácil construir isso, trata-se muito mais de uma ação de partido, de movimentos, de força política na sociedade, do que de decisão por decreto. Mas, se a ideia de Estado comunal puder ser concretizada na Venezuela, é muito bom. Tem que ver como se casa com a democratização da institucionalidade burguesa realmente existente.

Correio da Cidadania: As críticas progressistas ao governo chavista – tido como uma das poucas experiências autenticamente soberanas na América Latina - remetem, de um certo modo, ao próprio senso crítico mais à esquerda relativo ao governo Lula/Dilma, ambos enfatizando as insuficiências de um projeto de desenvolvimento basicamente assistencialista, incapaz de conduzir a uma efetiva emancipação e distribuição da renda nacional. O que diria frente a esta analogia?

Gilberto Maringoni: Não se trata de assistencialismo, essa é a maneira com que a direita chama qualquer distribuição de renda: “assistencial”, “paternalista”, “populista” etc. Não é bem assim, o aumento de salário mínimo na Venezuela é pra todos, direito universal. Os direitos reconhecidos das minorias são universais. Não tem essa de assistencialismo. Depara-se com um processo de transformação, de aumento de emprego mesmo sem industrialização, mas com serviços, incentivo à pequena empresa, financiamento a pequenas iniciativas, empreendedorismo popular, coisas muito importantes.

Assistencialismo é o seguinte: o governo dar uma mesada pro pessoal não fazer nada. Isso não existe, nem o Bolsa-Família é assim. Há um processo de conquista social muito acentuado na Venezuela, que vem se dando num momento difícil do mundo, de crise econômica, do capitalismo e do neoliberalismo, de agressão do imperialismo, que já tentou e não conseguiu derrubar o Chávez.

As críticas existem, devem ser feitas, há burocratismo, há problema na execução de recursos públicos, mas isso é parte de um processo formador nada fácil de ser tocado nos tempos que correm e num país sem autonomia industrial, como é o caso da Venezuela.

Correio da Cidadania: O que pensa da aproximação de Chávez com o presidente colombiano Juan Manuel Santos?

Gilberto Maringoni: A aproximação do Chávez com o Santos é uma política de Estado, não de partido. Ele não pode só bater num país que, ao lado do Brasil, tem a maior fronteira com a Venezuela, um país que tem essa fronteira desguarnecida e um intenso comércio bilateral, crescente nos últimos anos. A aproximação é positiva.

É preciso dizer que o Juan Manuel Santos não é o Álvaro Uribe. O Uribe fez um governo mais à direita. Os dois são do espectro da direita, mas Uribe era o governo do tacape, do enfrentamento pesadíssimo contra as FARC e também de enfrentamento aberto ao governo Chávez. Era o governo do Plano Colômbia, governo que recebeu bilhões de dólares, muita coisa pra um país daquele tamanho, para um plano de defesa inexplicável. Um plano de defesa que colocava nove bases militares dos EUA no país, para pouso de aviões bombardeiros, cargueiros etc., tornando o país quase um protetorado estadunidense.

O Santos não só deixou de ir adiante com o Plano Colômbia, como deixou de fazer uma política agressiva contra a Venezuela, como o Uribe fez. Com Uribe, era quase declaração de guerra. O Santos, mesmo sendo de direita, procurou o caminho da convivência política mais pacífica. Quem tem de resolver os problemas do governo colombiano é a população colombiana, a correlação de forças internas, não tem por que o Chávez entrar nesse combate. Juan Manuel Santos mostrou querer uma convivência pacífica e até chamou o Chávez para ajudar nas negociações com as FARCs.

Correio da Cidadania: Quanto à entrada do país no MERCOSUL, qual a sua avaliação?

Gilberto Maringoni: A entrada da Venezuela no Mercosul talvez seja o acontecimento político-econômico mais importante do continente nos últimos anos. Isso porque expande o Mercosul de forma inédita. O órgão foi criado nos anos 90, na época do governo Collor, com apenas quatro países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), no momento de auge do neoliberalismo. A autonomia do MERCOSUL, não só como mercado, mas como área de intercâmbio político, cultural e social, era nula. Era um projeto 100% neoliberal. Mas o Mercosul vem mudando, não à toa vem sendo combatido por certa direita do continente.

De toda forma, tornou-se um mercado espetacular. Abrir um mercado consumidor como a Venezuela interessa para o empresariado de países como Brasil e Argentina. E abre também, pela primeira vez, a chance de a Venezuela ser um mercado não só de petróleo, mas que se expanda, com isenções aduaneiras e desenvolvimento de novos mercados, implantando novas indústrias internamente. É um mercado monstruoso em termos de população e PIB.

No meio disso, tinha a saída do Paraguai fazendo ruído. Por que eles eram contra a Venezuela no Mercosul? Era um problema meramente político-ideológico, porque ao Brasil (mais) e à Argentina (menos), países mais desenvolvidos, interessava a entrada da Venezuela - o comércio entre Brasil e Venezuela cresceu sete vezes entre 2002 e 2012. E o Brasil tem muita a coisa a vender, leite, frango, gado, aviões, automóveis, assim como a Argentina. O Paraguai não tem nada pra vender pra eles, por isso pôde ser a ponta de lança dos interesses dos EUA dentro do bloco, sendo efetivamente o único país a se contrapor à entrada da Venezuela.

O PIB da Venezuela, agora incorporado ao Mercosul, é de 320 bilhões de dólares, fantástico, sendo um país de mercado interno crescente. Com 30 milhões de venezuelanos, passa-se a ter uma população total nos países do bloco de mais de 300 milhões, cadeias produtivas, como de energia e indústria, mais completas. Tanto que vários países querem fazer acordos de livre comércio na região. Não só Peru e Chile querem ser parceiros, mas também países como Israel, Egito... É uma área que não foi derrubada profundamente pela crise internacional, como Europa e EUA. Os outros países da região têm muito a ganhar. Já o Paraguai, ao dar o golpe de Estado, rompeu com a cláusula de Ushuaia, que determinava a não participação de países que tenham quebrado seu processo democrático.

Correio da Cidadania: Consumada, de todo modo, a vitória chavista, o que o governo precisaria levar adiante para conseguir conter o avanço da direita e aprofundar seu “socialismo do século 21”, dinamizando essa economia gritantemente dependente da renda petrolífera?

Gilberto Maringoni: É difícil dar uma fórmula do que precisa ser feito. Acho que eles estão agindo. A fase é de uma disputa política concreta, melhorando o acesso a recursos públicos, mas fazendo a batalha de ideias. A oposição foi pra batalha de ideias, ganhou grandes setores da classe média, ganhou espaço entre os pobres... Não dá pra dizer que Capriles teve 45% de votos só com base na classe média e na burguesia. Não. Essa é a questão séria: analisar o perfil dos eleitores e fazer o debate nacional.

Não tenho nenhuma dúvida que é muito bom o Chávez falar de socialismo político do século 21, como parte da luta política, exaltando um valor de uma sociedade que não seja comandada pelo mercado. Na prática, o que ele tem feito, e é muito bom, foi tomar a frente dos mecanismos de planejamento e controle econômico do Estado, com uma correspondência com o nacional-desenvolvimentismo, apesar de este ser um conceito de outra época. Mas tem muito a ver com a ideia de Estado forte, que possa suprir as necessidades de serviços públicos da população com razoável competência e dinamismo.

Correio da Cidadania: Como coloca, finalmente, esse pleito no xadrez político latino-americano? Qual seu grau de representatividade neste momento?

Gilberto Maringoni: Fiquei pensando no oposto, o que seria se ele perdesse. Seria um desastre. Acredito que a vitória de Chávez joga continuidade nesse ciclo, mas a Venezuela precisa, pela riqueza do processo político, de novas lideranças para assumirem o lugar do Chávez, que não ficará pra sempre. Se sua doença tivesse se agravado, o país teria problemas nesse sentido, de escolha do sucessor. Mas sua vitória dá luz a um processo de mudança na América latina, que começou com a própria eleição dele em 1998. 

Correio da Cidadania: Gostaria de acrescentar algo, especialmente no que se refere ao tratamento midiático dessa disputa, tanto dentro como fora da Venezuela?

Gilberto Maringoni: Li um artigo no Estado de S. Paulo, traduzido do NY Times, em que o colunista dizia que a vitória do Chávez era o início do fim do chavismo. Fui ler para saber por que, e era incrível: quarta vitória presidencial do Chávez, num processo de 14 anos, que se mantém, e ele analisa que o crescimento da oposição é o dado mais importante. Claro que este crescimento é um dado importante, não vamos subestimar. Mas o tratamento da matéria é aquele que sempre tende a distorcer, a colocar o governo de Chávez como um governo ditatorial, autoritário.

Há mil problemas, começando por essa necessária renovação das lideranças, pela conformação de um movimento social autônomo frente ao governo, que não seja controlado de cima pra baixo, pelo melhor manejo de recursos públicos... Tudo isso é verdade, mas os passos que se deram nesses 14 anos são impressionantemente maiores que os defeitos do governo. E foram passos dados num momento difícil da política mundial, com a Europa inteira tomada por governos de direita, as tensões dos EUA, invadindo Afeganistão, Iraque, jogando peso na invasão da Líbia e ameaçando a Síria e o Irã... O poder bélico da direita mundial nunca foi tão grande, assim como a crise econômica dessa direita. E a Venezuela deu a volta por cima, o que não é pouco.

O segredo de fazer política, na imprensa tendenciosa, é exaltar as próprias qualidades e os defeitos dos oponentes. Assim é muito fácil. Todo mundo tem defeitos e qualidades. Se eu exalto minhas virtudes e os seus defeitos, pronto. Aos olhos da opinião pública, com todo esse aparato midiático, é o que vale. O noticiário da Globo, Estadão, Folha é isso, não é surpresa. Mas eles não conseguem mais o que faziam há 10 anos, quando o golpe de Estado na Venezuela foi uma surpresa para os órgãos daqui. Agora eles têm correspondentes lá, um maior intercâmbio. Mas a cobertura continua tendenciosa. Fazer o quê? Eles tocam a vida assim. A população venezuelana não lê esses jornais, não concorda com eles e continua votando no Chávez.

 

* Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

 

Fonte: Correio da Cidadania, 26/10/12.

 


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