Harvey: A universidade como espaço de luta
 

 

David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes são: O enigma do capital e Para entender O capital, livro I.


Philip Stalhandske, do jornal sueco Lundagård, entrevistou David Harvey (foto acima) durante sua recente visita à Universidade de Lund. Um Harvey decepcionado pela falta de um movimento estudantil radical: “Acho que os estudantes têm que se auto-organizar”.

 

David Harvey descreve o segundo volume d’O capital de Karl Marx como “o livro mais chato que já escrito”. Sua obra teórica, uma introdução um pouco mais interessante, começou com uma reflexão sobre os aspectos contraditórios do capitalismo, cujo resultado é o livro Dezessete contradições e o fim do capitalismo (Boitempo, no prelo).

 

Depois de um dia no qual apresentou seu livro em um auditório lotado e fez parte da banca de uma tese, Lundagård se reúne com um David Harvey ligeiramente cansado no Grand Hotel de Lund.

O senhor afirmou em sua apresentação que “os estudantes endividados não protestam”. Por que pensa dessa forma e quem o senhor acredita que se beneficia disso?

Bem, trata-se de uma afirmação geral, não tenho provas empíricas. Mas é certo que os donos de moradias que estão endividados se mostram politicamente ativos, seguindo um rumo mais reacionário. Acredito que é bastante notável que parte do aumento das matrículas, que provocou no início a indignação estudantil e sua reação (na Grã-Bretanha), não tenha gerado um movimento estudantil durável. Minha conclusão, que tem muito de conjectura e muito de bem informada, é que o endividamento que está dominando o corpo estudantil tem sido, para começar, aceito, e que ao mesmo tempo é algo que vai manter as pessoas em uma situação de servas de suas dívidas durante uma considerável parte de sua vida.

O senhor pensa então que esse endividamento criou ou criará um corpo estudantil mais reacionário?

Não sei se criará um corpo estudantil mais reacionário. Desde já, não desencadeou o grau de ativismo que eu esperava que fosse produzido. Do mesmo modo, na Grã-Bretanha, a imposição das taxas de matrícula não geraram uma campanha a longo prazo de ampla agitação em prol da suspensão dessas taxas. Penso que, se neste caso tivesse havido uma agitação massiva, teria sido muito difícil para o Partido Trabalhista não ter dado seu respaldo à abolição das taxas. Acredito, de novo, que faz parte dessa aquiescência a aceitação da mercantilização da educação superior, à qual eu acredito que deveria se ter resistido com mais contundência.

O senhor mencionou a importância de fazer a informação chegar e de que “poderia ser que tivéssemos um movimento em nossas mãos” se essa informação tivesse uma ampla difusão. Qual deveria ser o método para isso e a quem ela deveria se dirigir?

Acho que os próprios estudantes têm que se auto-organizar e há sinais disso – pequenos grupos de estudantes que tentam reiteradamente gerar um movimento. Mas minha impressão é de que enfrentam uma enorme indiferença por parte da grande massa do corpo estudantil.

Mas a informação bastará ou existe uma “necessidade”, se é que esta é a palavra correta, de se empurrar ainda mais a população antes de se formar um movimento?

Há certas condições necessárias para que um movimento surja. Uma condição necessária, que eu acredito que a liderança de esquerda não cumpre, consiste em uma certa visão das alternativas. Muita gente perguntará: “Onde está a alternativa?” e “Que tipo de visão o senhor tem?”. Agora, oferecer alguma visão de algum tipo é um requisito prévio muito importante para qualquer movimento, mas isso não garante um movimento.

Minha visão dos processos de mudança social é de que precisa de mudanças simultâneas em muitas dimensões – entre elas, de nossas concepções mentais do mundo. E nossas concepções mentais do mundo se viram encurraladas pela forma como a atividade de oposição se estruturou. Se você quer denunciar a discriminação, tem que mostrar o prejuízo e a intencionalidade. A política de vitimização não é uma boa política de solidariedade. As vítimas podem se apresentar e pode ser que algumas contem um dramalhão qualquer que baste para conseguir compensações ou remédios. Mas não se faz nada para a grande massa da população, de modo que a história do dramalhão se converte na principal forma de política ou o remédio de alguns males.

O que me parece que a esquerda não entende é que ela está sendo encurralada nessa classe de oposição – o que, de fato, a torna bastante impotente quando se fala de movimentos solidários de massas. Há uma luta por encontrar formas de expressar uma oposição massiva a um sistema que formulou uma política na qual as únicas possibilidades consistem nesse tipo de política do vitimismo, o que não levará a nenhuma mudança radical. Uma vez que entendamos a sofisticação do encurralamento neoliberal dessa maneira, temos que aprender formas de transpô-lo, mas não acredito que tenhamos aprendido isso até este momento.

O contra-argumento mais comum por parte da esquerda em relação ao tipo de política que o senhor defende é que essa solidariedade humanitária é comumente destinada aos homens brancos.

Acredito que haja sólidas razões para sermos antirracistas e levarmos muito a sério as políticas de gênero. A dificuldade está no fato de que se você não presta atenção ao modo como o “motor econômico” do capitalismo atinge as pessoas, está perdendo boa parte do que é mais importante. Por exemplo, pode ser que haja quatro ou seis milhões de pessoas nos Estados Unidos que perderam suas casas, e um montante desproporcional das mesmas é imigrante, ou de comunidades afro-americanas, ou mulheres. Mas o impulso real que levou ao crack não pode ser explicado analisando raça e gênero. Suas repercussões se infiltraram na raça e no gênero, mas suas origens não.

Quais são as possibilidades das universidades enquanto espaços de luta?

Há pessoas que às vezes me dizem: “Você está aí metido no mundo acadêmico” ou “você precisa ir a uma siderúrgica”, ou algo parecido. Bem, da mesma maneira que em uma siderúrgica você precisa de trabalhadores do ferro que possam operar equipamentos, também precisa de gente que mantenha espaços abertos dentro da universidade para esse tipo de produção contra-hegemônica. E isso requer muito esforço, muito trabalho e muito compromisso.

 

Publicado em inglês em Lundgard.se, em 22 de abril de 2014.
A tradução é de Daniela Cambaúva

 

 

 

 

 


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