A REFORMA DA PREVIDÊNCIA PÚBLICA


O governo deveria mostrar que o problema resulta das políticas econômica e de recursos humanos anteriores.

 
Por Wilson Cano*


O déficit da previdência pública tem sido colocado como o bode expiatório do problema fiscal brasileiro. É verdade que em alguns Estados e municípios ele atinge proporções delicadas. Por isso é necessário tratar as duas questões separadamente e cotejá-las com outras despesas públicas. Por exemplo, no plano federal, o déficit previdenciário se situava, em 2002, abaixo das despesas financeiras sobre a dívida pública interna federal, que somaram R$ 29 bilhões.

 

 

Qualquer pessoa sensata e que compreenda minimamente a dimensão do problema fiscal brasileiro e da questão previdenciária sabe que é necessário estudá-la e fazer a sua reforma, tanto para se corrigir problemas estruturais como circunstanciais. Aqui nos ocuparemos somente da questão da previdência pública federal.

É lamentável que a discussão inicial se tenha pautado por termos semelhantes aos usados pelo governo anterior, que, desesperado em buscar dinheiro público para pagar e amortizar a sua dívida interna, investia contra os dois únicos itens orçamentários que ainda não haviam sido tocados desde as trapalhadas do (des)governo Collor: oito anos sem aumentar os funcionários da ativa e a tentativa de proceder, a toque de caixa, a reforma previdenciária, acreditando piamente que isto lhe aliviaria as dores orçamentárias causadas pelos gastos com os juros.

O atual governo deveria mostrar à nação que, a rigor, o orçamento da Seguridade Social (incluindo, é claro, a previdência geral e a pública) é superavitário, mas que, graças à “química” fiscal que passou a ser praticada por FHC, utilizando recursos da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) para outras finalidades que não as da seguridade, passou a ostentar um “déficit” crescente. Em 2002, o total arrecadado com ambas foi de R$ 65,6 bilhões.
 
Deveria mostrar também que as desastrosas políticas econômica e de recursos humanos de FHC comprimiram as receitas próprias tanto do INSS quanto da previdência pública federal.
 
Ora, nos termos em que a reforma é colocada, se o teto para o funcionário público fosse fixado em R$ 1.560 (como hoje, no INSS), pioraria ainda mais o quadro fiscal, pois a redução que isso causaria nas contribuições de seus servidores, mais o acréscimo de gasto com contribuições do governo, provocaria, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um novo rombo anual de R$ 2,6 bilhões no Orçamento federal!
 
Ainda que o teto venha a ser mais alto (digamos, R$ 2.400), o novo rombo seria apenas um pouco menor.
 
Convém lembrar que a drástica redução do teto no projeto do governo significará uma redistribuição “às avessas” (dos servidores para os juros devidos aos bancos e aos ricos).
 
A tabela mostra as contas do problema, com os dados de 2002, em R$ milhões. Assim, o déficit original, que em 2002 foi de R$ 30,9 bilhões, se reduz, com a contribuição devida pelo governo, para R$ 22,8 bilhões, o que, se não “resolve” o problema, ao menos o traz para níveis menos graves.

Cabe agora indagar as razões pelas quais esse déficit cresceu, principalmente na última década. Uma delas foi o inusitado aumento dos valores pagos (tanto para ativos como para inativos e pensionistas) aos chamados “marajás”. Contudo, isso parece que, a se aprovar o projeto atual do governo, deixaria de ser um “contrato intocável”.

Outra razão, talvez a mais importante, resulta de dois fatos: o primeiro, em 1990, da passagem de cerca de 250 mil “celetistas” (vinculados à Consolidação das Leis do Trabalho) do governo federal para o regime estatutário; o segundo decorre do susto causado ao funcionalismo desde 1995 (notadamente a militares), com os vários projetos de reforma. Disso resultou o seguinte: o quadro ativo desde 1990 passou de 992 mil funcionários para apenas 831 mil em 2002, mas o número dos inativos saltou de 481 mil para 906 mil.
 
Ou seja, 161 mil funcionários deixaram de contribuir e, ao mesmo tempo, o de inativos aumentou em 425 mil. Ao todo, diminuiu em 586 mil o número de contribuintes! Assim, não há sistema previdenciário de repartição que resista! O que houve aí, em parte, foi a transferência desnecessária de salários de ativos para inativos e a forte diminuição dos recursos de contribuições.

Há que se acrescentar uma nova questão decorrente do aumento da esperança média de vida, que, obviamente, alonga o período de recebimento de aposentadorias e pensões. Isto, sim, é um problema estrutural e exige reformulação do cálculo atuarial, com aumento das contribuições dos servidores. É claro que estes rejeitariam tal aumento, mas, se explicado sem açodamento e com ampla negociação, provavelmente seria aprovado.

O governo federal deveria fazer grande campanha de esclarecimento sobre os procedimentos existentes em vários países, que, embora não paguem 100% do último salário, desembolsam um alto porcentual deste e, em muitos casos, as contribuições são maiores que as praticadas no Brasil.

O déficit também poderia diminuir se, mediante ampla e esclarecedora negociação, se mostrasse ao inativo que, embora seus direitos sejam constitucionais, não faz sentido o fato de que, ao passar de ativo para inativo, este passe a receber um ganho líquido maior, dado que deixa de contribuir com os 11%. Como elemento amortecedor nessa negociação, pode-se sugerir uma contribuição progressiva, cobrando muito menos para quem ganhar pouco e muito mais para quem ganhar mais. Afinal, isso não é novidade, pelo menos para os servidores estaduais em São Paulo, que contribuem com 8% quando ativos ou inativos.
 
Para sorte deste país e de sua classe trabalhadora, o custo para uma completa transferência do regime de participação para um de capitalização é estimado em valores que representam o triplo do nosso PIB! Assim, essa quimera já foi afastada. Há, contudo, grande desinformação (e, muitas vezes, também doses de má-fé de outros) sobre o sistema de capitalização.

Simulações feitas por profissionais responsáveis (veja, por exemplo, as da Cepal) revelam que, para um fundo de pensão pagar um benefício integral ao teto, concluídos 30 anos de contribuição, exige que a taxa líquida (descontada a taxa de administração do fundo) de retorno de suas aplicações seja de, pelo menos, 5% reais por ano. Ora, nesses últimos 25 anos, somente a China teve um PIB por habitante com crescimento médio anual maior ou igual a 5%, cifra que, daqui para a frente, dificilmente será atingida, em média, por outros países.
 
Contudo, outros segmentos sociais têm interesses óbvios na polpuda importância que representaria a sua instituição. Basta olhar para o atual “déficit” da previdência pública federal, de R$ 35 bilhões (um valor equivalente aos fundos do BNDES), que engordaria ainda mais o sistema financeiro, o mercado de capitais e os sindicatos que, se eliminada a contribuição sindical compulsória, estariam mirando para a possibilidade de criar fundos de pensão “próprios”, com o que obteriam recursos substitutivos.

Outra questão se restringe a países que sofrem de problemas macroeconômicos graves e dificilmente removíveis, como o nosso. É uma ilusão pensar, como muitos fazem, que a instituição de tais fundos resolveria nossos problemas de financiamento de longo prazo.

É que esses fundos, se em mãos privadas, tentarão obter os melhores rendimentos possíveis no mercado e se recusarão a financiar empreendimentos que exijam longo prazo de maturação e baixo retorno. Se em mãos públicas, seguramente reproduzirão os baixos rendimentos que hoje obtêm o FGTS ou o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), a menos que também se convertam em túmulos dos títulos da dívida pública.

Contudo, há uma opção que deveria ser mais bem examinada: a constituição de um fundo público, lastrado por títulos federais de longo prazo, corrigido pela inflação mais um juro real de 5% ao ano (a metade do que é hoje pago aos bancos).
 
Com isso, durante cerca de 20 anos, se o governo depositasse anualmente o equivalente à sua contribuição legal, constituiria um fundo cumulativo capaz de, somente com aqueles juros, zerar os seus déficits previdenciários anuais. De quebra, iríamos nos livrar da angústia da rolagem de curto prazo de mais da metade da dívida e reduziríamos fortemente o montante de seus juros...

Antes de adotarmos qualquer projeto de reforma, é bom ver o que ocorreu com a nossa vizinha Argentina, cuja reforma previdenciária deu forte contribuição para a quebra financeira de seu Estado...


* Professor Dr. pela Unicamp
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Fonte: Carta Capital nº 239, 07/05/2003.