Entrevista do sociólogo Octávio Ianni
para o Jornal da Unicamp - Edição 220 - 14 a 20 de julho
Ianni alerta para
"satanização" do setor público
Considerado um dos pais da moderna sociologia brasileira, o sociólogo e
professor emérito da Unicamp Octavio Ianni mantém-se fiel a uma de suas
principais características como intelectual: a franqueza. Mesmo quando ser
franco signifique fazer duras críticas à esquerda, ala em que, como
socialista convicto, sempre transitou e defendeu.
Numa análise contundente e até certo ponto apaixonada, Ianni não poupa nem
mesmo o governo que ajudou a eleger em outubro passado, que, em sua
opinião, estaria promovendo a "satanização" de algumas categorias, como a
dos aposentados, funcionários públicos e professores universitários para
conseguir a aprovação das reformas que propõe, sobretudo a da
Previdência.
Como observador atento do globalismo e
de seus reflexos no terceiro mundo, Ianni diz que o cenário verificado no
Brasil é uma amostra da crise que a esquerda vive em escala mundial. "A
menos que se faça uma análise objetiva sobre as forças sociais que estão
atuando em escala nacional e transnacional, será impossível formular uma
nova política de esquerda" afirma. "Caso contrário será uma política de
nostalgia, sobre idéias que eram muito bonitas e válidas no passado, mas
que já dançaram". Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o
sociólogo concedeu ao Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp - A esquerda brasileira está inquieta e parte
dela se sente desconfortável com o momento político, como se estivesse
sendo inculpada das desigualdades sociais. Como o senhor analisa esse
quadro?
Octavio Ianni - Não há dúvida de que a sociedade brasileira está
atravessada por injustiças sociais. E não há dúvida de que esse quadro de
desigualdades deve ser superado aos poucos ou rapidamente. Há que
reconhecer, especialmente se se trata de um presidente da República, essa
realidade e lidar com ela de maneira objetiva. Em absoluto não cabe ao
presidente satanizar categorias sociais sem enfrentar a preliminar de como
encaminhar uma solução objetiva para os problemas da sociedade.
Concretamente, a preliminar de todas as preliminares é como criar emprego
para a grande maioria da população que se encontra subempregada ou
simplesmente desempregada. É inegável que algumas corporações dispõem de
vantagens escandalosas. Mas é importante reconhecer que os professores do
sistema público de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus têm sido
gravemente prejudicados pelas políticas governamentais desde a ditadura
militar, continuando com os governos civis e com o governo atual, que se
entregou gostosamente ao modelo neoliberal. Portanto, quando o presidente
está dizendo o que disse, ele está simplesmente servindo ou recitando uma
diretriz do consenso de Washington. E não está em absoluto revelando uma
visão de estadista sobre os problemas nacionais. Aliás, ele não pode ser
um estadista porque o governo atual não dispõe de um projeto nacional. Ao
contrário, esse governo instalou-se para resolver topicamente, ao acaso
das emergências, os problemas que vão surgindo.
JU - O que o senhor quer dizer com "satanizar"?
Ianni - Acho que tem de ser passado para o público uma visão de
conjunto para não ficar nessa artimanha dos argumentos governamentais. Um
governo que vem a partir de movimentos sociais está se dedicando muito
apressadamente a satanizar a atividade intelectual na universidade
pública. Portanto está contribuindo para favorecer a privatização e o
economicismo no primeiro, segundo e terceiro graus, que é um item do
ideário de Washington, ou mais concretamente uma exigência do Banco
Mundial.
JU - Em sua opinião, quais seriam as conseqüências dessa postura
para o ensino superior público?
Ianni - Os governos militares e os governos civis estão totalmente
atrelados às diretrizes do Banco Mundial, que desde os anos 60 e 70
começou a estabelecer favores financeiros e tecnológicos mas,
simultaneamente, passou a impor exigências. É o Banco Mundial que
estabeleceu as exigências que estão sendo implementadas no ensino público,
como o economicismo e a pesquisa e desenvolvimento. Desenvolvimento do
quê? Da nação, do povo? Não, é do mercado, das corporações, da economia
capitalista. O que os governos militares iniciaram os governos civis deram
continuidade e este governo, para decepção de grande parte do eleitorado
que votou no PT e no Lula, está jogando a última pá de cal no projeto
nacional e no estado de bem-estar social que se havia criado nas décadas
anteriores à ditadura militar.
JU - Mas o que o governo diz é justamente o oposto: que tem um
projeto nacional que outros nunca ousaram ter.
Ianni - Todos estamos vendo que os americanos estão jogando com a
hipótese de que o Brasil é o seu aliado preferencial na América do Sul, e
com isso ganhando a cumplicidade do governo brasileiro e das elites
brasileiras, no sentido de fazer o jogo da Alca, com a hipótese de que o
Brasil poderia obter algumas vantagens em detrimento das outras nações. A
rigor, o que os americanos propõe com a Alça na verdade é uma redefinição
da geopolítica norte-americana na América Latina, e portanto um
realinhamento das nações latino-americanas com a cumplicidade das elites
brasileiras. Há tempos que há uma cumplicidade das elites militares,
empresariais e alguns setores intelectuais com esse jogo malicioso do
governo americano, que faz de conta que o Brasil é o aliado preferencial
na América Latina.
JU - Em sua opinião, o que teria levado o governo a adotar uma
postura inversa do que vinha pregando enquanto corrente ideológica?
Ianni - Acho que isso é comum a vários partidos no Brasil. Eles não
têm análise do que está realmente acontecendo no país. Na minha
interpretação, desde 1964, com a ditadura militar, e depois com os
governos civis, está sendo desmontado um projeto nacional que era
vigoroso. Embora não fosse o projeto dos meus sonhos, porque era um
projeto de capitalismo nacional. Os militares, em função do jogo americano
da Guerra Fria, e depois os governos civis em função das imposições do
FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, trabalharam
ativamente o Consenso de Washington no sentido de desmontar o projeto
nacional. Pouco a pouco o Brasil se transformou numa província do
globalismo. Nos séculos 16, 17 e 18, o Brasil era uma província do
mercantilismo. Agora, no século 21, passou a ser uma província do
globalismo. E o presidente pensa que é presidente de um estado nação. Na
verdade é o administrador de uma província do globalismo. Mas ele não tem
essa análise. Eles estão jogando com a hipótese de que, se o Brasil
desmontar o seu projeto nacional entrará no primeiro mundo. Isso é
totalmente enganoso. O exemplo do que ocorreu na Argentina, que fez tudo
isso um pouco antes do Brasil, é suficientemente claro. É um desastre.
JU - A que o senhor atribui essa súbita atração pelo globalismo?
Ianni - Vou dar uma resposta que não é acadêmica. O sensualismo do
poder é irresistível. O fascínio do poder e, claro, a ilusão de que vai
governar um estado nação, induz os membros do governo a crer que estão
realizando uma tarefa meritória. Na verdade estão contribuindo para que o
país se mantenha nesse estado, podendo até piorar. Aliás, as corporações
transnacionais, não só norte-americanas, mas também asiáticas e européias,
escolheram o Brasil como base principal de suas operações na América do
Sul. E esta é uma escolha à revelia do governo e do povo. E uma escolha
que decorre da força que estas corporações têm no cenário mundial.
JU - Até que ponto isso representa uma ameaça à soberania nacional?
Ianni- A soberania nacional acabou. Antes, a soberania nacional era
problemática. Hoje, é uma figura abstrata. Qual a imagem mais evidente do
presidente, seja do passado (FHC) ou deste (Lula)? São fotografias em
salas de visita em várias partes do mundo. Isso cria na opinião pública
uma ilusão de que existe uma nação. Na verdade eles atendem os interesses
das corporações transnacionais, das organizações multilaterais e da
geopolítica do governo norte-americano no mundo.
JU -
O senhor acha que existe o risco de a sociedade cair numa grande decepção?
Ianni - Já caiu. Mas o problema é que a sociedade está tendo
condições muito limitadas de manifestação porque a grande mídia está
orquestrada com o neoliberalismo. A grande mídia é diversionista. Está
havendo um processo de popularização da imagem do Lula. A discussão sobre
a Previdência é conduzida satanizando os aposentados. De repente, as
pessoas que estão aposentadas nos diferentes setores da sociedade são
consideradas como peso morto. Isso é uma loucura, uma barbárie.
Governantes dedicados a satanizar uma categoria social porque já cumpriu
suas tarefas. É o reino da barbárie. Essa atitude da mídia cria um estado
de incerteza e de medo.
JU - Há riscos sociais nesse processo?
Ianni - A população brasileira tem sido frustrada continuamente por
reversões causados pelos jogos do poder que são um desastre para a
população. Em 1945 havia um processo de democratização que implicava numa
reconstrução do país depois da ditadura do Estado Novo. Esse processo foi
frustrado por um golpe de estado. Em 1964, quando o país estava numa
tremenda ascensão democrática, com conquistas sociais notáveis nos
governos de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, as elites militares
associadas com o imperialismo deram o golpe de estado. Depois, com a volta
dos governos civis, na chamada Nova República, há também uma sucessão de
frustrações. E a maior de todas é esta, porque o atual governo nasceu das
lutas contra a ditadura militar e as injustiças sociais. Então essa
conjuntura é altamente frustrante, com características diferentes, mas
semelhantes ao que ocorreu durante o golpe de 64 e o golpe de 45.
JU - Como o senhor analisa o discurso do presidente, quando ele
diz, por exemplo, que tem "quatro anos para provar que um torneiro
mecânico pode governar esse país com muito mais sabedoria do que ele já
foi governado"?
Ianni - Ele tem muitos motivos para fazer essa afirmação porque ele
também foi satanizado devido à sua trajetória política. Mas ele foi
satanizado por ser um símbolo das classes subalternas. É importante
lembrar que o PT e a liderança do Lula nasceram da luta contra a ditadura
militar e como uma reivindicação das classes subalternas. Na medida em que
se desenvolveu o processo político, ele foi se ajustando, negociando,
acomodando. Não há dúvida de que qualquer liderança política precisa
negociar. Mas o estado de espírito de muitos que votaram no Lula é de uma
profunda decepção, porque nesse percurso o partido e o próprio Lula
largaram na estrada muitos compromissos. O comprometimento crescente do
governo com o neoliberalismo significa o abandono de qualquer compromisso
social, salvo na retórica. Fala-se no Fome Zero, mas isso é uma retórica
vazia, porque o problema do país não é dar um prato de comida para o
faminto, e sim dar emprego para as pessoas não perderam a sua dignidade.
Para que um governante saiba o que é a dignidade dos humilhados e
ofendidos, dos desempregados, daqueles que vão receber um prato de comida,
é preciso ter uma visão de conjunto que implica em ter um sentido de
nação, que não está se revelando no governo atual.
JU - Mas a imagem do presidente, principalmente no exterior, é
muito positiva.
Ianni - Essa imagem altamente colorida e sonora tem a ver com a
orquestração do neoliberalismo. As corporações da mídia são
transnacionais. Por outro lado, há setores da opinião pública mundial que
não estão bem-informados sobre o que realmente está acontecendo. Estive na
Argentina recentemente e pude ver isso. Eles ainda estão galvanizados pela
imagem que se criou no passado sobre o PT e o Lula. Eles ainda não tomaram
conhecimento de que a prática desse governo não tem nada a ver com a sua
história. Estão apegados a uma imagem passada, que já ficou anacrônica.
JU - O senhor acredita que essa lua-de-mel continuará por muito
tempo?
Ianni- Acho que vai durar pouco. Aliás, o discurso que o Lula fez
no Rio Grande do Sul (Pelotas), foi um discurso de alguém que já está
assustado com o terremoto no qual está metido. Como já tive oportunidade
de ouvi-lo em muitas situações ao vivo nos tempos do ABC, percebi que esse
discurso feito no Sul revelava não só aflição, mas também alguns indícios
de desespero. E a reação é péssima, porque satanizar essa ou aquela
categoria social, culpar aqueles que levantam objeções e tentar
desmoralizar aqueles que fazem alguma reflexão crítica, é o pior caminho.
O Genoíno (José Genoíno, presidente do PT) está equivocado quando diz que
as críticas que a esquerda faz ao governo atual são o mesmo que jogar água
no moinho da direita. Essa declaração é maldosa, porque na verdade esse
governo já foi para a direita. Esse governo não é mais um governo de
esquerda. Foi uma promessa da esquerda, mas não é mais de esquerda. Uma
promessa que não se cumpriu.
JU - Como a esquerda brasileira vai elaborar essa nova situação?
Ianni- A esquerda está demorando para fazer uma análise objetiva
sobre o que aconteceu no mundo. Hoje o capitalismo entrou em um novo ciclo
de expansão em escala mundial. As nações estão transformadas em províncias
do globalismo. Desde que se faça uma análise objetiva sobre as forças
sociais que estão atuando em escala nacional e transnacional será possível
formular uma nova política de esquerda. Caso contrário, será uma política
de nostalgia, sobre idéias que eram muito bonitas e válidas no passado,
mas que já dançaram. O grande problema é como caminhar para um diagnóstico
objetivo sobre a realidade contemporânea e como desenvolver propostas. As
classes sociais dominantes no mundo estão altamente organizadas. A
Conferência de Davos, o G7, a OCDE, O FMI, o Banco Mundial, são expressões
de que as classes dominantes estão orquestradas. E as classes subalternas
estão demorando a entender que esse quadro é novo. |