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ADUR Online #29: BBB21 não é Wakanda: entre a superficialidade do debate racial e a profundidade do racismo

ADUR Online

26 de fevereiro de 2021

Por Rita Maria da Silva Passos

 

Nós Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer

(Carolina Maria de Jesus em Quarto do Despejo).

 

Para começar evoco as minhas Iyalodês: Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo. Com Lélia apreendo a importância de me expressar no ancestral “pretoguês”, baseado numa oralidade que apreende a formação étnica e linguística preta do Brasil. A partir da amefricanidade de Lélia recorro a esta categoria com dinâmica histórica própria norteada pelos mais distintos contextos que a constituem e, assim, possui força epistêmica, para produzir formas de pensar, produzir conhecimento a partir dos subalternizados, possibilitando mulheres e homens negros e indígenas serem sujeitos do conhecimento.

Em Conceição tomo de empréstimo o conceito cunhado de “escrevivência” que se refere a capacidade de escrever a partir da sua própria vivência. Desta forma, reafirmo seu preceito  e o premeditado ato de traçar uma escrevivência a partir de uma análise teórica do sobre o racismo, em  especialmente  num contexto de pandemia com a intensificação da necropolítica e recrudescimento da autoexpansão capitalista.

Esse mundo DC (Depois da Covid) tem acentuado todas as desigualdades sociais no mundo e no Brasil. Vários estudos apontam o aumento do desemprego entre os negros, a dupla jornada das mulheres, sobretudo das pretas que compõe a linha de frente na atividade de enfermagem, o maior número de óbitos entre os negros pela COVID, a espetacularização das mortes de pretos por agentes de segurança, aqui e no exterior¹.

Desta forma, a precarização das vidas negras foi reforçada neste período pandêmico, não por um pretenso novo normal, mas por uma necessidade de reorganização da expansão capitalista diante de mais essa crise. Esta crise da COVID19,  pode ser entendida como pertencente a crise estrutural do capital, definida por Mészáros (2013) se diferencia por: seu caráter universal, não se restringindo a uma determinada esfera e/ou ramo particular de produção; seu alcance global, atingindo a vários países, com alcance planetário; sua escala de tempo permanente; podendo ser considerado rastejante, sem que haja um momento específico de ápice.

Nesta perspectiva é possível presumir que todo o movimento Vidas Negras Importam, exportado para cá e toda a frenesi antirracista precisa ser desacreditada, necessitando restaurar todos os valores discursivos, práticos e ideológicos, para colocar nos termos  Taguieff (1977). Portanto, não se tratando de uma questão específica, mas  restaurar capital sua essência: sua autoexpansividade, usando e abusando do racismo estrutural. 

O que o BBB21 tem com isso?

Antes de mais  nada precisamos recuperar alguns aspectos teóricos e fatos recentes do que resultaram no conservadorismo à brasileira. Como atestou Florestan Fernandes (2005), a revolução burguesa no Brasil seria a base de sociabilidade moderna, com o ideal republicano e a noção de igualdade, mesmo jurídico-formal, não se concretizou da mesma forma como nos países do centro do capitalismo. Ao contrário, reputa-se à realidade brasileira a convergência de elementos arcaicos e modernos, o que Fernandes chamou de “modernização conservadora”.

Entender o conceito de revolução passiva é entender que nunca houve de fato uma revolução no Brasil nos moldes das revoluções burguesas “clássicas”. A proposta terminológica gramsciana segue o raciocínio da lógica do “conservar-mudando”, ou seja, tem “a intenção de caracterizar a natureza de nossa revolução burguesa, autocrática e alongada no tempo, em que o novo não cancela a antiga ordem social, sendo, ao contrário, tributário de elites políticas reformadoras” (VIANNA, 2004, p. 7), confirmando e atualizando o seu domínio. Sendo assim, parte-se do princípio de que não houve ruptura com a ordem social vigente.

Rocha (2018) aponta que as “novas direitas” iniciaram sua (s) organizações, ainda que sem recursos ainda no Governo Lula, mais precisamente no final do seu primeiro Governo. As redes sociais foram “os lócus” dessas incipientes organizações, onde discutia temas de cunho religioso, valores familiares, propriedade privada, livre mercado, onde destaca-se ao Olavo que desde 1998 vinha polemizando com intelectuais e acadêmicos de esquerda. Sem desconsiderar o papel das mídias sociais, exemplifico a derrota na eleição de 1982 do Lula ao Governo do Estado de São Paulo, com ressalta Chauí, a questão da “instrução” e da “competência”; a concepção de política e a noção de governo foram cruciais para o eleitorado trabalhador não se sentir representado e não votar.

Ou seja, podemos observar, assim, o papel em termos gramscianos, a ação dos aparelhos ideológicos de Estado ampliado, bem como podemos destacar o papel de destaque e histórico da Rede Globo  ao conservadorismo e aos golpes civil-militar de 1964 e, o mais recente e em curso, de 2016 que se consolidou com o impeachment da Presidenta Dilma. Neste bojo, o BBB21 vem corroborar como vários outros, se aproveitando da incipiência da luta antirracista dada por muitos como “uma questão de querer” a despeito de uma compreensão mais profunda do processo e da importância da leitura dos autores negros. 

Assim, o BBB21 vem travestido de um caráter meramente recreativo reforçar  implicitamente essa ideologia conservador. Sim, não é de hoje. É  um programa que nos seus 21 anos já teve de um tudo. Pedófilo, estupro ao vivo, vencedora de BBB, dizendo que “adorava fazer piada para diminuir negro”. Contudo, ele ganha relevância devido ao contexto atual e ao isolamento que nos é imputado (na medida do possível e claro, para quem pode). 

Selecionando a dedo um time de negros com supostos  perfis distintos com uma discursividade racial, ignorando a saúde mental das pessoas nesse período pandêmico. Coloca oito  negros para participarem do programa. O que poderia ser muito bom,  se além de irresponsável com todos os participantes e sem fazer uma reflexão profunda de tudo que esse período poderia representar e se Martin Luther King já não tivesse nos profetizado sobre a tokenização, baseado em fatos reais.  

A tokenização refere-se a inclusão simbólica de minorias e seu significado vem da palavra “token”, que significa “símbolo/chave” em inglês. Martin Luther King (1962) afirma que o tokenismo  possui por objetivo transmitir uma imagem progressista, sem haja um objetivo concreto de incluí-las, bem como  permitir tenham direitos iguais aos do grupo dominante. Ou seja, é quando uma organização ou projeto incorpora um número mínimo de membros de grupos minoritários somente para gerar uma sensação de diversidade ou igualdade.

Portanto, todo ódio gerado aos protagonistas negros deste programa sendo eles heróis ou vilões é desproporcional para exacerbar, um conteúdo que reforça em todos progressistas e conservadores. Assim, temos,  um reforço dos estereótipos da negra raivosa, do negro que “nem é tão preto assim”, a desequilibrada (nega maluca?), o jovem que precisa de ajuda e de caridade e assim, por diante…  sem considerar os aspectos objetivos e subjetivos sob os quais o racismo se ancora.

Conforme o Gonzales e Hasenbalg (1982) o racismo cujo cerne reside na negação total ou parcial de humanidade dos negros e de outros não-brancos, constitui a justificativa sobre povos de cor. Os autores registram que preconceitos e disseminações raciais não se conservam intactos pós-abolição, adquirem novas funções e significados dentro da estrutura social. As práticas racistas do grupo social dominante, longe de serem reproduções do passado, estão associadas a benefícios materiais que os brancos obtêm na desqualificação competitiva do grupo negro. Assim, não parece existir nenhuma lógica inerente ao desenvolvimento capitalista que leve a uma incompatibilidade entre racismo e industrialização. A raça como um predicado social e historicamente elaborado, e continua a funcionar como um dos critérios mais importantes na distribuição e manutenção de pessoas na estrutura social. 

Desta forma, a raça se relaciona essencialmente com um dos aspectos da reprodução das classes sociais:  a distribuição dos indivíduos nas posições da estrutura de classes e dimensões distributivas da estratificação social. Dois fatores importantes, relacionados a estrutura desigual de oportunidades e de mobilidade social pós-abolição, podem ser identificadas como determinantes das desigualdades raciais contemporâneas no Brasil: a desigual distribuição geográfica de brancos e negros e as práticas racistas do grupo social dominante (GONZALES E HASENBALG, 1982).

De acordo com Fanon (2003), adiciona-se ao racismo o caráter subjetivo de um sentimento de inferioridade do colonizado produzido pelo colonialismo decorrente da derrota do dominado que, assim, aceita e internaliza essa dominação e inferioridade, por conseguinte. Desta maneira, estrutura o racismo, sob a ideia de superioridade do colonizador, bem como justifica sua intervenção por meio da divulgação da ideológica, traduzido como um benefício à população, apagando o seu aspecto violento. Ademais, esse processo fomenta a alienação colonial, tendo na figura do colonizador o portador dos valores civilizatórios e universais, enquanto o colonizado, em oposição ao primeiro, é tido como incivilizado, selvagem e indigno de ter transmitido seus valores primitivos. 

Fanon (2003) chama atenção para a importância da linguagem e da racialização no processo de inferiorização do colonizado e exemplifica a atribuição de subalternidade à língua nativa em relação a branca/ europeia. Desta forma, criou-se uma escala de valores ideológicos e que os nativos se aproximam ou se distanciam, o quanto mais ou menor familiarizados com o idioma. Também aborda a exaltação aos valores europeus caminham juntamente com a negação sistemática de todas as dimensões humanas do colonizado. 

Essa relação de alteridade entre nós e eles também é abordada por Neuza Souza Santos, no livro: Torna-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (1983). Com um enfoque psicanalítico a intelectual negra aponta que apesar do processo de existência que está sendo (experiência), existe o sujeito que se recompõe em relação a rejeição do olhar do outro: 

 

Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. […] Este livro representa meio ânsia e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. […] Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos. (SOUZA, 1983, p. 17)

 

Assim seguimos destituídos de nossas diferenciações, ambiguidades, contradições e compelidos a pedir eternamente perdão por uma perfeição que exigida de nós. Assim muitos, viraram Lumena, Projota, Gilberto, Lucas… Porque nos silenciar é a prática mais comum. Só Martin Luther King também profetiza que jamais haverá mudança social sem nós. Em seu épico discurso ele, realizado no dia 28 de agosto de 1963 nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, D.C. como parte da Marcha de Washington por Empregos e Liberdade nos diz: … sua liberdade está intrinsicamente ligada à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder.

BBB21 não é aquilombamento. Nunca será Wakanda. O BBB é outro golpe. Fora fabricado como o ódio as pautas progressistas de inclusão social e a redução das desigualdades sociais que se manifesta em vários dos nossos momentos históricos de golpe político social, fortemente armado  e aniquilando todos os Pretos, em todos os seus tons.

 

Notas 

¹ Oliveira, Roberta Gondim de et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 36, n. 9 [Acessado 21 de Fevereiro 2021] , e00150120. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120>. ISSN 1678-4464. https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-10/pandemia-revela-desigualdades-raciais-dizem-pesquisadoras

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/11/17/pandemia-aumenta-desigualdade-racial-no-mercado-de-trabalho-brasileiro-apontam-dados-oficiais.ghtml

 

Bibliografia

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008 

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2005.

GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. A. Lugar de negro. Editora Marco Zero, 1982. 

MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.

____________. Crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

OLIVEIRA, Roberta Gondim de et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 36, n. 9 [Acessado 21 de Fevereiro 2021] , e00150120. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120>. ISSN 1678-4464. https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120.

ROCHA, C. (2018). “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão. Rio Janeiro: Ed. Graal, 1983. 

TAGUIEFF, Pierre-André. O racismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. Parte I “Uma exposição para compreender” – “Problemas de uma teoria do racismo”, “Um fenômeno inerente à natureza humana?”, “Um fenômeno moderno de origem europeia”, “Limites e efeitos indesejáveis de uma definição restrita” e “Rumo a um modelo de inteligibilidade”. Págs. 13-83.

VIANNA, L. W. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004. 

 

Rita Maria da Silva Passos é doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), economista (UFRURALRJ), pesquisadora Antirracista e professora do IBAM.

 

ADUR ONLINE é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.


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