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Epidemias na Baixada Fluminense: Surto de Varíola em Magé em 1913

ADUR Online

Análises em Debate – 15/05/2020

 

Por Lúcia Silva[i]

Este texto tem o objetivo de apresentar um evento pouco conhecido da historiografia e da população da Baixada Fluminense. O interesse de resgatar essa epidemia de varíola, acontecida há mais de cem anos tem três razões. A primeira delas é o desconhecimento de um acontecimento que faz parte da história local, e toda comunidade tem o direito de conhecer a sua própria história. A segunda razão está relacionada a possiblidade analisá-la à luz da pandemia atual, afinal a atuação do Estado naquela epidemia tem características muito parecidas com as de hoje. Por fim e não menos importante, dar visibilidade a uma fonte pouco explorada existente no CEDIM/UFRRJ.

Para dar conta de analisar esse evento pouco conhecido, este texto está dividido em duas partes, além desta pequena introdução e das considerações finais. A primeira parte visa apresentar um panorama social da primeira década do século XX na Baixada Fluminense em relação ao sistema de saúde. A segunda parte trata do evento em si a partir do relatório do delegado de higiene de Magé, buscando resgatar a crise sanitária. Nas considerações finais há uma pequena análise do surto/epidemia à luz das características da pandemia atual.

 

  1. Saúde, doença e região:

Baixada Fluminense é uma sub-região da Região Metropolitana com um longo histórico de surtos e epidemia, aliás, sua denominação está intimamente ligada à ideia de lugar insalubre, como área baixa e pantanosa de grande disseminação de doenças palustres. A Grande Iguaçu do século XIX foi assolada por inúmeros surtos de cólera, malária e varíola, tornando-a no século XX, objeto de saneamento das comissões federais e das estaduais.

A relação entre a região e as epidemias pode ser vista em inúmeros momentos, um deles, bastante conhecido, foi a mudança da sede do município de Iguaçu em 1891, ocorrida durante um surto de varíola que assolou as chamadas “terras alagadas”. No grande município não havia rede médico-hospitalar, já que os primeiros postos de saúde seriam instalados na década de 1910 através da campanha de profilaxia do governo federal supervisionada na região por Belisário Penna. Antes da existência desses postos de profilaxia rural, as doenças eram tratadas pelos poucos médicos em seus consultórios, ou na rede de farmácias locais e nos hospitais existentes ao longo da linha férrea, na cidade do Rio de Janeiro. Houve casos de doentes que morreram na plataforma da estação de Nova Iguaçu esperando pelo trem, pois o primeiro hospital local foi inaugurado somente em 1936.

Sem estrutura de saúde, o Estado, normalmente o governo estadual, agia em resposta ao aparecimento/aumento das doenças endêmicas. Os surtos antes da construção das linhas férreas propagavam-se através dos rios, sendo controlados com isolamento, bastando para isso o fechamento dos inúmeros trapiches particulares existentes ao longo dos muitos rios que cortam a região. A chegada do trem mudaria esta forma de propagação, visto que a malha ferroviária articulada à viária tornou-se vetor de proliferação das epidemias, na medida em que as estações passaram a atrair a população local, que se deslocava pelas estradas vicinais, aumentando o fluxo de pessoas nos caminhos terrestres.

As doenças palustres, consideradas endêmicas na região, dizimavam parte da população local, eram objetos de preocupação dos gestores estaduais, que tinham como ação garantir a transferência de recursos aos municípios durante os surtos, deixando para as municipalidades o protagonismo no combate às crises sanitárias. Além do repasse de recurso nos momentos emergenciais, o governo estadual realizava, como profilaxia, obras de limpeza de rios e de dessecamento em períodos sem epidemias. Interessante ressaltar que no século XIX, a vacina da varíola, apesar de conhecida estava pouco disponível à população, por ser cara e de difícil armazenamento. Além desse obstáculo havia outro igualmente complexo, visto que o público alvo não confiava em sua eficácia, assim, embora fosse o único meio eficaz de combate à doença, a vacinação não era popular.

A revolta da Vacina em 1904, se por um lado pode ser pensada como manifestação da resistência da população à vacina, por outro mostrou a atuação do Estado no combate à varíola, massificando a vacinação na maior cidade do país. Somente tendo isto em mente, ou seja, maior popularização da vacina, a falta de estrutura de saúde local e o ambiente insalubre da região, é possível entender e aproximar aquelas características às da pandemia de hoje

 

  1. Surto de Varíola em Magé em 1913

Os eventos narrados têm como base o relatório do delegado de higiene de Magé entregue à Inspetoria Geral de Higiene do Estado do Rio de Janeiro, pelo médico Eduardo Estella. O documento tem 61 páginas e começa com a epígrafe de Osvaldo Cruz: “só tem varíola quem quer”. A frase faz sentido porque à época a vacinação já era ação/recomendação médica de profilaxia corriqueira, ou seja, naquele momento não era para existir surto/epidemias de varíola, dada a disponibilidade da vacina; o autor leva isto em consideração e divide em quatro itens o seu relatório: vacinação, isolamento, desinfecção e tratamento.

O primeiro caso relatado ocorreu em 21 de janeiro de 1913 e no dia seguinte, segundo o médico, mais casos seriam informados à municipalidade, exigindo ação da delegacia de higiene. A primeira preocupação explicitada pelo autor foi com economia local, temia, em suas palavras, com o prejuízo d“o comércio e a pequena lavoura”. O autor ainda fez uma pequena digressão sobre a doença, mostrando que a vacinação era o melhor meio de profilaxia e que os acometidos no município estavam entre os não-vacinados.

 

Afirmamos também com igual satisfação e entusiasmo que nas nossas epidemias de 1911 e a atua, só foram atingidos pela horrorosa moléstia indivíduos não vacinados
Eis aí a bela e exuberante prova da ação imunizadora da vacina
Entretanto, a sua necessária obrigatoriedade entre nós repetimos com profunda mágoa, sofreu dos cariocas a mais ousada e criminosa repulsa (Rio de Janeiro, 1913: 25)

 

O delegado de higiene ao comparar a população de Magé com a do Distrito Federal queria explicar o que para ele era inexplicável, pois muitos moradores do município, assim como os da cidade do Rio de Janeiro, não acreditavam na ciência e por conta disto se negavam a inoculação “das linfas”. O primeiro item do relatório era justamente o progresso da ciência em relação ao único meio eficaz de contenção da doença: a vacina. O segundo item era o isolamento, naquele momento realizado em um hospital próprio para os contagiados de varíola e domiciliar para o restante dos moradores.

Isolamento era a prática de separação dos doentes, o problema era que o hospital estava em mal estado de conservação e não estava distante do núcleo central da sede do município como desejava o médico, ainda assim acolheu os acometidos que quiseram ir.

O receituário era separação dos doentes em um hospital próprio e isolamento domiciliar daqueles que tiveram contato com os infectados e dos próprios contagiados que não quisessem ir, mas a confirmação da doença era feita através do aparecimento dos sintomas. Aliado ao isolamento vinha a desinfecção dos ambientes por onde os pacientes passaram.

O rastreamento da moléstia era importante para a desinfecção do ambiente e da conscientização da necessidade da limpeza pessoal como medidas sanitárias aos que tiveram contato com os doentes.

 

Declarada a moléstia com aparecimento dos sinais objetivos, o paciente era imediatamente removido para o Isolamento, ficando a família, em observação, na casa fartamente desinfectada
As desinfecções das casas de onde saiam os variolosos eram constantemente reproduzidas, no sentido de ser assegurada a tranquilidade dos seus moradores e bem assim a da coletividade (…)
A desinfecção tem por fim destruir os microrganismos patogênicos, agentes da infecção – evitando o seu contágio e transmissão
A desinfecção completa o isolamento, e vice-versa” (Rio de Janeiro, 1913: 40-45, grifo meu)

 

A desinfecção esbarrava na falta de estrutura de saneamento (esgotamento sanitário) e de rede de água (água potável) no município, tornando as medidas de higiene difíceis de serem executadas entre a população local, tais como banho e lavagem das mãos, mesmo com a disponibilidade de material de limpeza, grande parte doada pela Companhia de tecidos Magéense.

O tratamento em si era o último item do relatório, e ainda que fosse uma doença bastante conhecida, o médico assumia pouco conhecimento de como cuidar dos contagiados. ¾ do relatório ocupavam-se da profilaxia, ou seja, da vacina, de como se deveria ser o isolamento e as dificuldades de execução das medidas protetivas para a população que teve contato com os doentes. Sobre como tratar dos acometidos pela varíola o médico da municipalidade pouco sabia.

 

Não há, pois, da nossa parte a mais ligeira ideia de exibição de novo critério no tratamento da varíola, já bastante ventilado e esgotado pelos autores modernos.
Ninguém ignora que na roça o médico usa e abusa do método empírico, sendo de todo sacrificada a ciência com a sua dolorosa soberania beleza e poesia (Rio de Janeiro, 1913: 52)

 

O médico assumia conhecer pouco as novas técnicas de tratamento da doença, descrevendo então o que na prática ele estava fazendo e das dificuldades enfrentadas, principalmente pela falta de proteção dos que lidavam com a moléstia, segundo suas palavras, “sempre hostil e pernicioso aos profissionais” (Rio de Janeiro, 1913: 52), inclusive porque alguns pacientes ao tomarem conhecimento do contágio agrediam fisicamente os técnicos de saúde.

O médico terminava seu relatório informando que só queria informar a existência da epidemia no município às autoridades competentes e que esperava que os eventos ali descritos fossem úteis aos leigos e não aos profissionais de saúde. Esperava sensibilizar a população à vacina, à necessidade do isolamento e à eficácia das medidas de higiene. Muito atual.

 

Considerações finais

A vacina naquele momento estava disponível, e diante do surto, o médico buscou pedagogicamente convencer a população da necessidade da vacinação. Parte da população se negava a tal ação e foi ela o vetor de propagação. As medidas de profilaxia esbarravam em problemas concretos além da desconfiança de parte dos habitantes na eficácia da vacina, visto que a falta de infraestrutura da cidade (rede de água e esgoto) e do próprio hospital, produtos do descaso das autoridades públicas, contribuíram para o fracasso de parte das medidas adotadas no combate ao surto. Todos que foram para o hospital, morreram

O Auxílio da iniciativa privada, no caso a companhia de tecido, minimizou as dificuldades de higienização do núcleo urbano e a manutenção do isolamento das pessoas. Um médico, representante da ciência e do Estado, procurando convencer os moradores a se vacinarem através de um relatório oficial, e o seu desconhecimento em relação ao tratamento fez com que seu cuidado com os doentes fosse em grande parte ineficaz. Algumas observações podem ser feitas acerca do evento. A primeira é o negacionismo em relação à ciência e foi este posicionamento de parte da população que gerou o surto (prefiro surto para a Baixada porque na região, só Magé teve, embora no estado do Rio outras localidades também fossem acometidas, daí epidemia). Muito antes da Revolta da Vacina questões ligadas à saúde eram politizadas e com a vacinação não foi diferente, assim como hoje ocorre em relação ao isolamento.

A iniciativa privada ajudou a desinfecção da localidade permitindo que a fábrica continuasse funcionando. A economia foi a primeira preocupação do médico e para variar o estado não tinha estrutura para o enfrentamento da epidemia já conhecida, principalmente porque exigia saneamento. O relatório mostra que a população já tinha conhecimento das medidas e foi por isto que nem todos foram ao hospital.

O pequeno surto de uma doença endêmica na Baixada Fluminense no início do século XX acometeu oficialmente 48 pessoas (porque apresentaram sintomas) e matou 5 pessoas, a maioria negra, todas com alguma comorbidade pré-existente. A epidemia se alastrou porque a população não acreditou na eficácia da vacina que se tornara obrigatória. Não parecer familiar o negacionismo, a falta de estrutura do Estado, a politização das práticas médicas e a ajuda da iniciativa privada, descontada, é claro, as devidas proporções (escala) com a pandemia atual?

 

[i]  Lúcia Silva é doutora em História, Professora Associada do Departamento de História do Instituto Multidisciplinar e do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas/ UFRRJ.


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